Uma infinidade de olhos azuis atentos se espalha pela cidade. Na farmácia, na churrascaria, na praça central e até mesmo dentro da bilheteria do cinema, eles estarão lá, impassíveis, feitos de gesso e pertencentes a um dos personagens mais barulhentos da recente história brasileira: o padre Cícero Romão Batista, ou para os íntimos, Padim Ciço.
Lá em Juazeiro do Norte, no sul do Ceará, a figura do padre é mais do que sagrada. Cícero, que nasceu no Crato, cidade vizinha, foi um dos primeiros a chegar à vila de Tabuleiro Grande, e peça chave na criação da cidade e sua conversão em Meca nordestina. Na cidade, a segunda maior do estado, só perdendo para a capital Fortaleza, tudo órbita em volta do padre.
Após chegar de uma viagem longa pelos interiores do Piauí até o Ceará, me hospedei no hotel Cicerópolis (cidade do Cícero), mais uma das inúmeras homenagens a ele. Na praça Pd. Cícero, uma estatua do cabra faz às vezes de fonte, orelhões e postos policiais com formato de chapéu preto circular e bengala, dois acessórios indispensáveis ao padre, que vivia sempre de batina preta.
E a idolatria segue Juazeiro adentro, que guarda as duas últimas casas em que ele viveu, a igreja do Perpétuo Socorro, com seu túmulo, e a Serra do Horto, local onde está o maior Cícero de todos, uma estátua de 27 metros de altura, guardiã mor da cidade.
Caminhar por ali traz uma sensação de claustrofobia e de vigilância intensa. O padre Cícero está onipresente a cada esquina e nas inúmeras barraquinhas que vendem padinhos de gesso, de borracha, que cantam e brilham no escuro. Só falta soltarem piruetas. Imagine então passar o carnaval, a festa mais popular e profana do Brasil em um lugar que junta mais de dois milhões de romeiros a cada evento especial relacionado ao Padre Cícero, no ano, como no dia de sua morte, em 20 de julho.
Sala de promessas no Memorial Padre Cícero
A invenção do Juazeiro
Cícero Romão Batista (1844-1934), antes de se tornar um “santo” pela maioria dos juazeirenses e milhares de fiéis, além do título de cearense do século, levou um bom tempo para se tornar padre. Como seminarista, era considerado pouco aplicado por seus professores, apesar da inteligência e da devoção. Só aos 26 anos recebeu o sacerdócio e pode se tornar padre. Saindo de Fortaleza, retornou ao Crato, onde ministrou aulas de latim.
O primeiro contato com o Juazeiro ocorreu na época do Natal. Convidado a rezar a missa do galo, o homem dos olhos azuis e cabelos loiros (mais conhecidos no Nordeste como galegos), se impressionou com a aridez do vilarejo e da falta de um pastor para o rebanho de ovelhas desgarradas. E, após uma visão mística da santa ceia, onde o próprio Jesus conclamava o sacerdote a cuidar daqueles sertanejos sem alguém que os conduzisse aos ensinamentos cristãos. Assim, em 1872, se mudou de mala e cuia para a vila, distrito do Crato.
Juazeiro, que só é do Norte para se diferenciar de Juazeiro-BA, é hoje uma das nove cidades que compõem o vale do Cariri cearense, junto com Barbalha, Nova Olinda e o próprio Crato, todos lugares da intensa vida do padre Cícero, que se tornou maldito para a igreja, por seus supostos milagres e alinhamento político. Mas hoje, o Vaticano começa a ver com olhos bem mais amistosos o cearense.
Estátuas de Padre Cícero e da beata Maria de Araújo
A Cruz
Não é exagero afirmar que o Juazeiro do Norte seja uma invenção genuína do Padre Cícero. É impossível imaginar a cidade sem a presença dele. Até 1889, a pacata vila mal figurava no cenário nacional. Mas após o famoso e controverso episódio da hóstia convertida em sangue, a vida do sacristão nunca mais foi a mesma. Era primeiro de março. A beata Maria de Araújo recebia a comunhão de Cícero, quando, espantado, viu jorrar sangue da boca da mulher. Um milagre, o sangre de Cristo. Ou apenas uma fraude. A polêmica estava acessa.
De Fortaleza, sede do bispado cearense, o bispo Dom Joaquim passou a olhar com muita atenção os acontecimentos ditos sobrenaturais do Juazeiro. E os olhos do bispo se arregalaram ainda mais quando a notícia se espalhou Brasil afora, atraindo uma leva de romeiros à vila. E o sangue continuou jorrando da boca de Maria de Araújo. Outras beatas diziam ter reuniões espirituais com anjos e com o próprio Cristo. Histeria geral. Dom Joaquim resolveu agir. Mandou dois padres de alta confiança dele para averiguar tais estórias.
E foram precisas duas averiguações para se constatar que os milagres juazeirenses e da região não passavam de fanatismo religioso e de algumas artimanhas químicas que faziam com que o líquido vermelho se assemelhasse ao sangue humano. Padre Cícero sofreu sua primeira suspensão das ordens religiosas. Por decreto do Vaticano e do bispado de Fortaleza, estava proibido de celebrar missas, fazer batizados e extrema unções. Só que duas das maiores características do padim eram a teimosia e a convicção em suas ideias.
Mesmo oficialmente suspenso, um mar de fiéis continuou se consultando espiritualmente com Cícero e a encher o Juazeiro, que não parava de crescer. A queda de braço do Padre Cícero com a cúpula da igreja católica para o reconhecimento do milagre do Juazeiro e da restituição de suas ordens religiosas continuaria. Se fosse preciso, iria até Roma, ter audiências com o Santo Ofício, e até mesmo com o papa Leão XVIII. E ele foi.
A Espada
Cícero retornou da Itália triunfante. Atestado pelo Santo Ofício, “Padre Cícero não participou de nenhuma fraude”, sendo inclusive elogiado, pois mantivera sua obediência em manter silêncio sobre os fatos polêmicos. Como as informações demoravam muito a chegar no começo do século XX, Dom Joaquim se aproveitou da falta de documentos oficiais, e alegou que nada havia se modificado na suspensão. Entre reviravoltas, Cícero, um teimoso obediente à sua igreja, amargou mais de 50 anos suspenso das ordens.
Sem exercer a função do sacerdócio, Cícero Romão passou a se enveredar pelos caminhos da política. Há algum tempo, passara a ser amigo do médico baiano Floro Bartolomeu, que se instalara no Juazeiro disposto a explorar uma mina de um sítio pertencente ao padre. Só que, no meio do caminho, ou da história, o governo estadual, encabeçado por Franco Rabelo, declarou guerra ao fanatismo religioso do Juazeiro, que resolveu proclamar sua independência do Crato.
Com as tropas do governo instaladas na cidade vizinha, restou ao padre orar pela paz. Só que com rifles apontados para o inimigo. O Dr. Floro se encarregou de armar uma esquadra para os combates. Nos planos do governo cearense e de alguns entusiastas na capital, o Juazeiro, terra dos romeiros cegos de fé, deveria ser destruído, assim como Canudos, do beato Antônio Conselheiro.
De um lado, as tropas estaduais e federais, sedentas da cabeça do padre. Do outro, um esquadrão de romeiros, devotos e cangaceiros, com rifles à mostra e terço junto ao peito, dispostos a dar a vida pelas terras sagradas do padim Ciço.
O lado escuro do terço
O governador Franco Rabelo dava como certa a vitória de suas tropas contra os fanáticos ignorantes do Juazeiro. Após a longa viagem de Fortaleza até o Crato, os soldados mal tiveram tempo para descansar ou se armarem de acordo. A pressa em liquidar o vizinho rebelde era urgente. E assim foram, a pé, até o Juazeiro. Ao chegarem, a surpresa: ao redor da cidade, uma imensa trincheira havia sido construída.
Enquanto os homens se preparavam para a guerra, o Padre Cícero havia recrutado crianças, mulheres e velhos para cavarem o fosso. Até colheres foram utilizadas na obra. Resultado: o exército, por conhecer pouco a região e sem conseguir adentrar o território inimigo, perdeu a primeira batalha. E, na segunda investida, os homens do governador saíram humilhados. Floro Bartolomeu e seus “cabras” foram se assanhando e invadiram o Crato.
Apesar de Cícero pregar que a guerra só servia para defender o Juazeiro de sua destruição, a cruz e a espada já tinham se cruzado. Pelo envolvimento político, foi excomungado pelo Santo Ofício, mas morreu sem saber do fato, pois Dom Quintino, bispo da recente diocese do Crato e responsável pelo anúncio, acreditava que o padre aliviasse a sua teimosia, e que talvez não agüentasse o baque da notícia.
Então, as tropas sertanejas de Floro passaram a invadir e a saquear cidades próximas, e, nos trilhos do trem, cortaram Ceará adentro até os arredores de Fortaleza. Lá do Rio de Janeiro, o poderoso senador Pinheiro Machado, que, na surdina, apoiava o movimento, contribui para a queda de Franco Rabelo e a volta de Nogueira Accioly ao governo do Ceará. Todo esse confronto ficou conhecido como a Sedição do Juazeiro, que a partir de 1914, foi elevado à condição de cidade. O primeiro prefeito: Padre Cícero.
Além de exercer por vários mandatos o cargo de prefeito, Cícero ainda foi sub-governador do Ceará e Senador, após a morte de Floro Bartolomeu. Nunca assumiu o cargo. Continuou afastado da igreja e cada vez mais recluso em si mesmo. A vista já não era de águia. O corpo precisava de longos repousos. E, como se não bastassem às doenças, ele ainda convivia com um problema que deixara seu pescoço torto.
Nesse longo caminho, até Lampião chegou a fazer parte da história do Juazeiro, que evoluía a todo vapor. Na década de 20, com a Coluna Prestes serpenteando Brasil adentro e próxima das terras sagradas, o padre mandou chamar o rei do Cangaço para ajudar. Lampião se bandeou para o Juazeiro, mas a Coluna havia tomado outro rumo. Daí nasce o mito errado de que Cícero teria ligações profundas com o cangaço.
Sertão de Nuvens
A década de 30 chegou. Cícero Romão Batista agoniza em uma cama muito simples. Dores. E, nos versos de Luiz Gonzaga, “Meu padim fez uma viagem, pois deixou o Juazeiro sozinho”, abençoa os que estão próximos de seu leito e prega: “No céu, pedirei por vocês todos”.
A cidade do Crato, que por muito tempo foi referência no Cariri cearense, ficou em segundo plano frente ao Juazeiro. Apesar de Cícero ser cratense de nascença, é juazeirense de coração e hoje, sua fascinante história está concentrada nas ruas de Juazeiro do Norte. A igreja católica, sob o papado de Bento XVI, começa a acenar com mais simpatia para a reabilitação do padre brasileiro das ordens religiosas. Até uma possível canonização é comentada.
Perdendo cada vez mais espaço e fiéis para as correntes evangélicas, a igreja católica viu
em Pd. Cícero um filão imperdível. E os juazeirenses, muito religiosos em geral, aguardam o dia em que poderão exibir com orgulho imagens de seu
padim dentro das igrejas da cidade. Só há duas referências sobre Cícero dentro de um templo: uma foto e um vitral, virado para fora, na igreja do Perpétuo Socorro, onde está enterrado.
Mesmo envolto em tantas polêmicas e escândalos, a figura simples do Padre Cícero, batina preta, chapelão e cajado, ainda causa extrema comoção nos que nele acreditam e crêem em sua grandeza e bondade. Para uma multidão, um santo. Para outros, um farsante e amigo dos cangaceiros, que fez fortunas com as doações de seus romeiros, e que continuam até hoje. Existe Padre Cícero para todos os gostos.