domingo, 17 de abril de 2011

Um homem bom




            O Super Santos de Neymar e Ganso teve que enfrentar mais que zagueiros e volantes em 2010. Durante uma visita para entregar ovos de Páscoa em um Lar de Caridade espírita, alguns jogadores se recusaram a descer do ônibus e entregar os presentes.  Parte da delegação santista é evangélica. O Espiritismo, que nem religião é, e sim uma doutrina, é muitas vezes encarado como macumba. E o caminho tortuoso do preconceito e da falta de informação sempre acompanhou a jornada terrestre de Chico Xavier. Mesmo longe da vida terrena, o médium espírita ainda causa muita comoção e polêmica.
 Dois de abril de 2010. Na data em que celebraria 100 anos, Chico foi homenageado pelo diretor Daniel Filho com o longa “Chico Xavier”. O filme, em uma semana de lançamento, se tornou sucesso de público, com quase um milhão de espectadores. Fora o sucesso comercial, a produção se mostra ao mesmo tempo sensível e sóbria ao explorar a conturbada vida do médium e o espiritismo sem cair na apelação. Além da viagem que o espectador é convidado a fazer nas montanhas suaves de Minas Gerais.
Nascido em Pedro Leopoldo, região metropolitana de Belo Horizonte, em 1910, Chico Xavier conviveu desde a meninice com seus “fantasmas”, com as vozes que insistiam em povoar sua cabeça. De família católica, perdeu a mãe muito cedo. Criado pela madrinha,  iniciou com ela um batismo de fogo e provações. Para madrinha Rita, o menino estava de parte com o diabo. Por isso, o obrigava a longas rezas e a lamber as feridas de seus primos como formas de penitência.
O padre da cidade, seu amigo, achava tudo aquilo maluquice de criança. Na escola, era tratado como lunático e criticado pelos outros alunos, pois ganhava os concursos de redação sempre com uma ajuda extra do Além. O pai, compadre João, andava preocupado. Pegou Chico e o levou para se deitar com as mulheres da vida. Ao invés de perder a virgindade, ensinou as moças em descaminho a rezar.
 Pedro Leopoldo ficou em pavorosa. Chico escrevendo cartas de gente que já morreu. Uma multidão se juntando na porta da casa dos Xavier. O novo padre puxando novena atrás de novena para expulsar os “diabos” que haviam tomado conta de lá. A família já não aguentava tamanho assédio. Chico percebeu que novos ares lhe fariam bem.


Sabatina e mudanças


Aos que não acreditavam nos canais entre encarnados e desencarnados, Chico Xavier não passava de um charlatão que enriqueceria à custa de doações. Mas como isso seria possível, se ele, psicografando mais de 400 livros com o auxilio de seus guias espirituais Emmanuel e de André Luis, nunca ganhou um centavo em direitos autorais. Que não cobrava consultas, além de dedicar uma vida inteira à caridade e ao bem ao próximo. Dono de uma vaidade única: usar boina ou peruca para esconder a calvície.
Em 1971, já muito popular, foi convidado para uma sabatina no Pinga Fogo, tradicional programa de entrevistas da TV Tupi. Para os entrevistadores, era a chance de ouro para desmascarar a farsa. O programa durava 60 minutos. Com Chico, durou quase duas horas, sendo uma das maiores audiências do período. Com a voz pausada e bem mineira, Chico Xavier respondeu sereno até as mais ferrenhas das perguntas.
Após o Pinga Fogo, ganhou simpatia em todos os cantos. Mas muita gente continuou torcendo o nariz para tudo aquilo. Residindo em Uberaba desde 1959, coordenava um centro de caridade mantido com a venda dos livros e doações. E não é difícil imaginar como ficavam cada vez mais disputadas as sessões de psicografia. Mães que haviam perdido seus filhos. Todos os tipos de gente procurando um alento, uma mensagem de um ente querido, um consolo.
Uma das cartas psicografadas por Chico protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da Justiça brasileira. Um morto absolveu um vivo. Com uma carta, cuja assinatura foi confirmada por peritos como sendo a do morto, o réu foi absolvido, depois de constatado que o assassinato em uma brincadeira com uma arma fora acidental.
E os anos se passaram no plano material. O Brasil se tornou a maior nação espírita do planeta, com mais de três milhões de adeptos. Chico, com aquela placidez, aquela voz calma, foi adoecendo cada vez mais. A catarata, companheira inseparável desde a juventude, tirou-lhe a visão. Mas as mãos, mesmo trêmulas, ainda escreviam pelas janelas da alma. Não querendo incomodar ninguém, desencarnou, aos 92 anos, em 30 de junho de 2002, enquanto a seleção brasileira conquistava o pentacampeonato mundial.
 O Brasil estava feliz. O homem bom podia, finalmente, deixar o mundo terreno, das expiações, da intolerância e da maldade, e adentrar caminhos de luz, de pureza e bondade, de onde ele, mesmo encarnado, nunca saiu.


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