sexta-feira, 4 de março de 2011

No meio das águas de ouro


           Na Guiana Inglesa, enchentes e rios se misturam ao garimpo e aos mais diversos povos




- Eu achei que vocês eram holandêis. Josué, roraimense de Boa Vista, se espanta de ouvir minha mãe e eu falando português.  Para ele, minha pele e olhos claros pareciam europeus demais para um brasileiro. Não se encontra gente assim tão fácil em Roraima. Na Guiana Inglesa, tampouco.
O caminho da fronteira do Suriname para Georgetown, a capital, é feito por vans que esperam na beira do rio que liga os dois países. A viagem, de quase três horas e 200 e tantos quilômetros, revelam um cenário pouco comum para a América do Sul. Comunidades hindus vão brotando na beira da rodovia. Templos indianos. Vacas passeiam pela estrada e descansam aonde lhes convém. Não há regras de trânsito claras. Cada um faz sua velocidade e cuida para não atropelar o animal, sagrado para os indianos. Junto com os templos hindus, surgem mesquitas e descendentes de escravos.
Assim é Georgetown. Um quadro multi-étnico da Guiana, que foi colônia holandesa até 1812 e pertenceu ao império britânico até 1966.  Guiana, terra cheia de águas em idioma indígena. E o nome do país não me decepcionou. Chegando à capital, uma chuva tremenda alagou as principais ruas da cidade. Josué já acha até graça. Isso aqui é comum aqui. A van, que na linguagem dos garimpeiros vira “navete”, atravessa aquele mundo aquático como se fosse um barco. Pessoas andam de galochas e ensopadas até os joelhos.
Josué é mais um brasileiro que se arrisca no garimpo do ouro. Fala meia dúzia de palavras de inglês para se virar. Para indicar aonde vai, solta um you go Hotel Santo Antônio para o motorista. Em uma rua do centro de Georgetown, um pequeno Brasil se formou, com bares tocando Bruno e Marrone, mercados brasileiros e agências de viagens. Dali saem as “navetes” que vão até Lethem, na fronteira com Roraima. Como não arrumamos passagem de avião para o Brasil, resolvemos encarar o trajeto por terra. Terra mesmo, já que a maior rodovia da Guiana é barro puro, aberta no meio da selva amazônica. 

                                            Rua alagada em Georgetown         


Lombar dourada

E lá se vão quase 700 km chacoalhando no caminho, repleto de buracos gigantes cheios de água. O carro vai cheio. 11 passageiros. De última hora, aparece uma moça com seis malas e entope a van de bagagem e gente. Todo mundo espremido, com malas e sacolas nos pés e no colo. Já passam das 19 h quando o motorista, um negro de cabelo rastafári, dá partida e começa a atravessar as ruas muito escuras de Georgetown. Paulo Oliveira, 34 anos, pele escura e surrada, garimpeiro de Boa Vista, viaja do meu lado e começa a explicar o funcionamento do garimpo.
A gente vem até George e procura uma colocação em algum garimpo. Tem lugar que a gente demora quase dois dias pra chegar a partir da rodovia. A gente viaja de navete e de barco. As terras têm dono e ele geralmente é o dono da máquina. Em cada grupo tem de seis a nove pessoas para trabalhar com a máquina e fazer a extração do ouro, que aparece de pedacinhos na terra. Depois essas lascas são fundidas até virar barras e ir mundo afora. A gente recebe pela porcentagem de ouro encontrado. Dentro do garimpo tem televisão, cozinha e uns barracões que o pessoal dorme. Quando tem mulher trabalhando, ela tem um barracão só pra ela, para ficar mais à vontade.
Segundo Paulo, que trabalha há nove anos no garimpo, ele já chegou a fazer R$10 mil por mês. Marli, outra roraimense que busca ouro na Guiana, diz que, apesar de um salário melhor, é uma vida muito sofrida. To indo pra Boa Vista visitar meu marido que ta com hanseníase e vai ficar um ano afastado do garimpo. Eu pego malária com frequencia no mato. Dor de cabeça, febre, mal estar. Mesmo assim, sou uma das que mais trabalham ali. Acordo de madrugada e ando cinco, sete quilômetros atrás de pontos que tem ouro.
Marli, uma morena de olhos verdes, com filha trabalhando de cozinheira no garimpo, diz que os brasileiros respeitam as garimpeiras, apesar de muitos não terem mulher lá e recorrer às prostitutas que trabalham nos bordéis perto dos acampamentos. Os guianeses é que são folgados. Eles gostam mais das branquinhas. Uma vez um deles me agarrou e tentou me estuprar, mas gritei tanto que ele desistiu. Outro ponto que dificulta a vida dos brasileiros do garimpo é a intensa corrupção policial. Quando viaja a Roraima, Marli deixa guardados de dois a três mil dólares guianeses, cerca de 30 reais, para o suborno para passarem com passaporte sem visto de trabalho vencido ou com grandes quantidades de dinheiro ou pepitas de ouro.

                                            Ao estilo inglês, direção invertida em plena Amazônia


Para não dormir, o motorista, que tenta ser gentil com todos, deixa rolar um som bem alto durante o trajeto. Bob Marley, grupos de forró e tecnobrega, Raul Seixas, músicas românticas das antigas. A moça que leva a mudança dentro da van não tem passaporte nem outro documento. A cada parada em um posto da polícia, fica escondida dentro do carro, com malas em cima dela. O caminho ainda é longo e a cada pulo que a van dá para desviar de um buraco é como se uma vértebra fosse embora. Na madrugada, parada para descanso em um sítio de índios, que alugam redes para dormir algumas horas. Estou morto e nem percebo que todo mundo saiu do carro. Quando acordo e vejo uma pessoa olhando o bagageiro com uma lanterna, penso em assalto. Não dessa vez.
Mesmo sendo um país com menos de um milhão de habitantes, a Guiana não é um deserto absoluto em seus interiores. Na beira das rodovias, algumas vilas aparecem, além de alguns postos com barracas de comida e bebida. Postos de gasolina não se encontram. É preciso levar galões com combustível no automóvel. Já passa das onze da manhã quando Lethem surge, com suas ruas de terra batida e atmosfera de cidade de faroeste. Ali é possível comprar todo tipo de quinquilharia made in China, de perfumes e tênis importados a ventiladores. Como em Santa Elena, a fronteira da Venezuela com Roraima, Lethem é o shopping center dos roraimenses.
Depois de 18 horas de viagem sem conforto algum, as costas moídas e o pescoço arrebentado, chegamos a Boa Vista. A moça sem lenço e sem documento desceu em Lethem, antes da imigração, e cruzou de táxi para o Brasil. Paulo resolveu ir até a capital roraimense de ônibus. Dividimos um táxi com Marli e Domingos dos Santos, o Tiririca, comerciante que vai buscar mercadorias na Guiana e na Venezuela para revender no Brasil. Em meio ao ouro do garimpo amazônico, das ruas alagadas, dos templos de muitas religiões e crenças e do calor maldito, a Guiana desaparece na poeira da terra batida.



Nenhum comentário:

Postar um comentário