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No Acre faz um calor descomunal. Como diria Nelson Rodrigues, "um calor de derreter catedrais". O ônibus chacoalha por uma estrada regularmente pavimentada. Saio de Xapuri, terra do seringueiro e ambientalista Chico Mendes, com destino à Brasileira, e depois, Assis Brasil. É nesse rincão das Américas que a mirabolante Rodovia Transoceânica começou a ser construída, em 2006. O projeto é uma mescla de interesses: o governo do Acre quer sair do ostracismo de ser um estado com pouca comunicação. A Odebrecht comanda mais uma obra desafiadora. Os governos do Brasil e do Peru vislumbram com a rodovia um aumento nas trocas comerciais entre os países.
O nome Transoceânica é algo que impressiona. Saindo de Santos ou de alguma outra cidade do Atlântico brasileiro, é possível chegar ao Acre, e de lá, alcançar o Pacífico. A conclusão do trecho peruano, o mais trabalhoso, deve levar mais uns três anos.
Mas enquanto isso não se concretiza, é sempre bom relembrar uma história. Em Assis Brasil, me informava de como poderia pegar um ônibus para o lado peruano. Não há ônibus, apenas alguns taxistas peruanos que fazem o caminho. E eis que surge Juan, um homem de traços tipicamente andinos, com seu táxi em péssimo estado, oferecendo o serviço. Eram nove da manhã. Calor. Entrei no carro sentido Puerto Maldonado. O ponto final seria Cusco, a cerca de 700 km de Rio Branco. Dentro do carro, uma Belina branca, sacos de açúcar que Juan leva para revender no Peru a preços inflacionados, dois camponeses cheios de cacarecos e eu, o turista.
Saímos cortando a selva amazônica peruana, em uma estrada ainda de terra. Milhares de homens e mulheres têm trabalhado com as adversidades da floresta para tornar possível a rodovia. Juan fala muito de futebol. E cobre um preço salgado para um turista hermano: de Iñanpari, na fronteira com o Brasil, até P. Maldonado, 150 soles (86 reais). Após quase quatro horas correndo pela selva em um carro pouco confiável, inúmeras buzinadas ( no Perú e na Bolívia, a linguagem da buzina é algo bem recorrente) e uma colisão com um urubu, que se estatelou no vidro, chegamos a Puerto Maldonado, de onde eu pegaria um ônibus para Cusco.
Passagem até a antiga cidade dos incas = 60 soles (34 reais). A viagem é, digamos, uma odisséia. Saí às 14h30 de P. Maldonado para chegar a Cusco no dia seguinte. A quilometragem, no entanto, é quase ínfima: cerca de 360 km. O ônibus oferece banheiro, uma refeição (arroz com frango) e muita música alta, além de vendedores entrando a cada parada para tentar empurrar algo aos passageiros. Em duas ocasiões, ficamos quase meia hora sem rodar devido ás obras na Transoceânica. Por volta das oito da noite, parada em um vilarejo. Desci, me alonguei um pouco e retornei ao ônibus. Tudo estava muito escuro. A Amazônia, um silêncio sepulcral. Cochilei enquanto exibiam uma película. Foi aí que no meio do caminho tinha uma pedra.
Vários homens armados pararam quatro ônibus de linha. Ouvi alguns estalos, luzes e o cheiro de pólvora. Ainda sonolento, fui descer do veículo. Na porta, um homem encapuzado gritava, com uma escopeta na mão: para baixo e ninguém olha. Na terra fria da floresta, a sensação de impotência. Crianças chorando, agarradas às saias das mães, que tremiam só de pensar que as poucas economias estavam virando pó diante dos olhos. Escuridão. Barulho de tiros. Ao lado de uma mulher gorda, da qual não lembro o nome, tive um momento de auto-defesa e comecei, com a ajuda da mulher, a enterrar minha carteira.
Consegui resgatá-la, após rastejar pelo chão antes de voltar ao ônibus. Tinham me levado uma mochila com a câmera, mp3s, dinheiro e uma jaqueta. Sobrou o cartão de crédito, esperando que ele funcionasse. Chegamos a Cusco na manhã de 16 de janeiro, meu aniversário. Estava sujo, congelando e com a ideia de terminar a viagem por ali. Não terminei.
Passei um dia na polícia, andando de camburão pra lá e pra cá, junto com as duas moças de Rio Branco que estavam no ônibus. Viramos notícia em um jornal de 50 centavos. Tudo é aprendizado. O caminho terrestre para Cusco oferece uma das paisagens mais deslumbrantes do planeta: o encontro da Amazônia, das árvores imensas, com a Cordilheira dos Andes. Parafraseando Fernando Pessoa, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Mesmo sendo roubado em castelhano.
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