sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A mão da resistência

No ano em que completa cinco anos, Lei Maria da Penha consegue muitos avanços nas políticas públicas para mulheres, mas ainda é cercada de dúvidas, preconceito e falta de informação
Foto: Divulgação União Brasil



“Nunca pensei que a minha luta pessoal fosse atingir a dimensão que ela atingiu. Eu lutei, por quase 20 anos, por justiça. Eu queria que quem me deixou paraplégica pagasse pelo crime. Graças a Deus, a dimensão foi muito maior do que a punição. Hoje, todas as mulheres são beneficiadas por essa lei, as com deficiência também. Eu acho que, realmente, é melhor deixar de se lamentar, é melhor você não se deixar recolher na tristeza e tentar mudar aquela situação que está incomodando. Quando a mulher sente que a política pública favorece que ela denuncie, ela tem medo, mas enfrenta. Agora, o difícil é não ter a política pública. E se não fizermos nada agora, nossas descendentes vão sofrer violência doméstica como nós e nossas antepassadas sofreram. A principal finalidade da lei não é prender homens, e sim, punir o homem agressor, que não sabe tratar sua mulher com dignidade”.
Ouvir essas palavras pessoalmente da boca de Maria da Penha Maia Fernandes, 66, não é tarefa fácil. Maria da Penha, apesar de muito simpática e comunicativa, é pouco dada à imprensa, muito por conta do “bombardeio midiático sensacionalista” em torno do seu nome. Antes de começarmos a entrevista, em uma sala da Associação dos Deficientes Motores do Ceará (ADM), às 14hrs, em Fortaleza, Maria, com um sorriso e apontando o dedo indicador, quer a certeza de que mandarei a entrevista antes da divulgação: “ta compromissada a história, responda aí?”, pergunta, com um leve sotaque cearense.  
O assunto principal da conversa, no entanto, pouco tinha a ver com um dos nomes mais fortes das políticas de defesa da mulher. Maria da Penha, cadeirante desde 1983, ano da tentativa de homicídio por seu ex-companheiro, Marco Antônio Heredia Viveros, também é muito engajada na defesa de políticas de acessibilidade para os deficientes físicos. A sensação de estar frente a frente com ela, no começo, é estranho. Parece mais que estou em frente a uma entidade, um ícone. Mas Penha, como é conhecida por muitos, é de carne e osso e carrega na pele e na alma um assunto quase inevitável de não se tocar, ainda mais por ela dar nome à Lei 11.340, que pune a violência doméstica contra a mulher e que esse ano completa 5 anos de criação. 
A biofarmacêutica, que gosta de Roberto Carlos, acha que é preciso saber viver. O fato de estar em uma cadeira de rodas, segundo ela, não a limita. Maria vive em uma casa adaptada, junto com a mãe, Dona Lery, 94, e só precisa de ajuda para se levantar e se deitar na cama. Desde 2009, está à frente do Instituto Maria da Penha e gostaria muito de ter um carro adaptado, para que pudesse colocar em prática o Instituto itinerante, e a cada 15 dias, visitar um bairro de Fortaleza.
Apesar dos muitos avanços que a lei trouxe para a defesa das mulheres, Maria da Penha, uma senhora muito elegante e doce, não se ilude e sabe que isso é apenas um começo. “A gente tem uma lei aqui no Ceará que diz que toda cidade com mais de 60 mil habitantes deveria ter uma Delegacia da Mulher e isso não acontece. Para você ter uma ideia, no estado todo, existe 184 municípios e 8 Delegacias da Mulher. Em Fortaleza, com 2,5 milhões de habitantes, apenas 1”.
Depois de 1 hora de conversa, acompanho Maria da Penha ao carro adaptado de Seu Mauro, pai de Maurinho, que tem uma paralisia espinhal, e que tornou o encontro com ela possível. Mais à vontade, acabo perguntando a ela como é o relacionamento com o ex-marido, principalmente após uma entrevista concedida por ela à revista Istó É, no final de 2010, e pelo livro “A Verdade não contada no caso Maria da Penha”, no qual ele a acusa de tê-lo “transformado em um monstro” e por “o Brasil achar que a Maria da Penha é uma coitadinha porque está numa cadeira de rodas”. Muito serena, Penha apenas responde que nem ela, nem as filhas têm mais contato com ele há muito tempo. “O que eu sei, assim como todo mundo, é que ele vive em Natal”.
Quanto aos homens mal informados, que fazem piada com a lei e alegam que deveria existir a lei João da Penha, para punir as mulheres que agridem os maridos, Maria, sempre categórica, conduz sua cadeira de rodas antes de voltar para casa: “Eles não têm ideia de quantas mulheres sofreram para que essa lei existisse. Eu vou continuando a minha luta em relação à violência doméstica familiar, do jeito que eu fazia antes de a lei existir, só que agora com mais intensidade e recursos”.

Um breve relato da história de Maria da Penha
1945- Nascimento de Maria da Penha, primogênita de uma família de 5 irmãs, em Fortaleza, no Ceará.
1973- Formada biofarmacêutica, se muda para São Paulo para fazer mestrado e conhece o estudante de Economia colombiano Marco Antonio Heredia. Se casam e mudam para Fortaleza, onde, após conseguir sua naturalização, Heredia começa a agir de maneira agressiva com a mulher e as filhas. Maria teme ser morta, mas pede o divórcio, só que o marido não aceita.
1983- Em 29 de maio, Maria da Penha recebe um tiro na coluna do ex-marido enquanto dormia. Além de Marco Antonio, moravam na casa as três filhas do casal e duas empregadas. Após quatro meses de internação, Maria volta, paraplégica, para casa. Ela acusa o marido de mantê-la em cárcere privado e tentar eletrocutá-la durante um banho.
1984- Primeiro depoimento de Maria da Penha. Marco é detido, não confessa o crime e é liberado, mas o Ministério Público o acusa formalmente de tentativa de homicídio. Buscando anonimato e fugir da hostilidade em Fortaleza, Heredia se muda para Natal, no Rio Grande do Norte.
1991- O ex-marido é condenado a 15 anos de prisão, mas o julgamento é anulado por falhas na elaboração das perguntas feitas aos jurados.
1994- Lançamento do livro “Sobrevivi...Posso Contar”, de Maria da Penha.
1996- Segunda condenação de Marco Antonio (10 anos e meio). Ele ganha direito a responder o processo em liberdade e a pena cai para 8 anos e meio.
1998/2001- Maria da Penha e órgãos que defendem a mulher fazem uma denúncia à Organização dos Estados Americanos. A OEA acusa o Brasil de conivência com a violência doméstica e alerta o país por não ter políticas públicas contra a violência da mulher.
2002- Dezenove anos e cinco meses depois do crime, o processo, quase expirado, é reaberto e Marco Antonio é condenado a 16 meses em regime fechado. A partir de março de 2004, cumpre o regime semi-aberto até fevereiro de 2007, quando consegue a liberdade condicional.
2006- Em 6 de agosto, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva sanciona a Lei 11.340, batizada de Maria da Penha.
2010- Marco Antonio lança “A Verdade não Contada no Caso Maria da Penha” e “Extermínio de Homens”, alegando ser inocente e vítima de um erro do Judiciário.
2011- Aniversário de 5 anos da lei. Maria da Penha continua vivendo em Fortaleza, e Marco Antonio, em liberdade condicional, continua vivendo em uma quitinete na periferia de Natal. Sua pena acaba em fevereiro de 2012.

O caminho do agressor
A violência doméstica familiar em Rio Preto, vista sob a ótica de profissionais que trabalham na área ena visão do agressor e da agredida



“A mulher saiu da costela do homem. Não dos pés, para ser pisada. Nem da cabeça, para ser inferior. Saiu do lado para ser igual. Debaixo do braço, para ser protagonista. E ao lado do coração, para ser amada”. Na recepção da única Delegacia da Mulher em São José do Rio Preto, aberta em 1986, um quadro bordado em azul e vermelho, com a frase acima, recebe as mulheres que vão prestar queixa contra seus companheiros ou companheiras, já que a lei também é aplicada a relações homoafetivas.
Subindo as escadas, se encontra a sala da delegada titular Dálice Ceron, desde 1997 no cargo, e o primeiro passo para quem resolve não se calar diante da violência doméstica. Segundo Dálice, a maioria dos casos parte da violência do marido, mas podem partir dos filhos, sogra e outros parentes, desde que a violência (física, psicológica, verbal, racial) seja em âmbito doméstico. “Nós só não cuidamos de crimes patrimoniais” esclarece, enquanto faz um balanço dos 5 anos da lei: “A lei Maria da Penha foi uma resposta que as mulheres desejavam. Só que a maior deficiência dela reside na própria mulher, que na maioria das vezes, está presa ao companheiro pela dependência financeira e os filhos”
Para ela, a violência é democrática e não distingue classe, credo ou cor, apesar de os maiores registros ser feitos nas classes média e baixa. “Nas classes altas, a mulher muitas vezes a infidelidade e a violência do marido para manter as aparências. Nas classes baixas, além disso, a mulher tem que suportar a falta de comida, de estrutura e o álcool. É muito difícil denunciar o agressor. Ele é o príncipe encantado que ela sonhou. Só que mulher pobre é mais decidida, enquanto a rica teme perder os privilégios e a sociedade”.
Durante a entrevista, a assistente social Tânia, entra na sala para tirar dúvidas sobre um caso. “Tem uma mulher aí dizendo que o filho ta metido com pedra e ta roubando tudo da casa, até os fios. Ela quer usar a lei Maria da Penha porque tem medo que ele leve gente perigosa pra dentro de casa”. A delegada apenas diz que aquela situação não cabe boletim de ocorrência e pedir medidas sócio-protetivas, como o afastamento do acusado da residência. “Acho que essa senhora não quer ver o filho morando na rua. Ela tem medo é de quem ele pode trazer para dentro de casa”, pondera a delegada. No fim, a maneira encontrada para a denúncia é alegar o “terror” que a mãe sente diante da dependência química do filho.
Tânia Garcia, muito simpática, diz que quando a mulher vai à delegacia, ela está decidida a denunciar seu agressor. O espaço ali, segundo ela, é importante para se buscar informações e se fortalecer junto a um serviço. “Aqui ela vai ser ouvida e ter uma voz. A mulher, hoje, tem mais autonomia, está inserida no mercado de trabalho e diminuiu esse estereótipo da mulher coitadinha.
 Dálice concorda, e acrescenta que os jovens têm um papel muito importante na diminuição das desigualdades. “Esse é um processo muito longo, mas os jovens têm aprendido a dividir as responsabilidades e tarefas com suas companheiras. Eles podem mudar um quadro social muito arraigado, o do marido provedor, que sustenta a casa, e o da mulher cuidadora, que zela pela casa e pelos filhos”.
“Rio Preto sempre foi pioneira nas políticas da mulher” afirma Regina Chueire
“Não é que aumentaram os números da violência doméstica. O número de denúncias é que cresceu”, explica a ex-secretária da mulher Regina Chueire. Desde a criação do serviço de denúncia 180, em 2006, mais de 2 milhões de denúncias foram registrados. Segundo Chueire, as políticas públicas da mulher foram um dos primeiros pontos abordados durante o governo Lula (2002-2010). “O Lula vivenciou, dentro de casa, a violência contra a mulher, no papel de sua mãe, Dona Lindu”.
Para a secretária, a mulher não quer ver seu marido preso, e sim, tratado. Por isso, é importante olhar também o lado do agressor, entender que ele também é vítima de violência, das mais diferentes maneiras, e precisa de auxílio. “A chave para se equilibrar o feminismo, já que a mulher atual demonstra seus gostos, tem grana e tem a vida sexual ativa e seus desejos, com o machismo, arraigado na sociedade, é o respeito, impor limites para que exista harmonia”.
Segundo Chueire, a violência doméstica independe de gênero. “Quando o transexual ou um homossexual, é agredido, e ele se sente um mulher, pode-se recorrer à lei Maria da Penha”. Mas alerta: “o que não podemos fazer é banalizar a lei. Não é porque uma mulher é palmeirense, e a outra, corintiana, e as duas se agridem, que a lei tem validade”. Apesar de o Superior Tribunal de Justiça ter decidido que o Boletim de Ocorrência é suficiente para se abrir um processo de violência doméstica, Regina alega que o processo é bem mais complexo. “Muitas acham que é só ir à Delegacia da Mulher e fazer o B.O. Os meandros da lei são muito mais complexos”.
Na Secretaria da Mulher, existem processos em andamento para ampliar a independência da mulher, como revela a secretária, no cargo desde 2009. “ Aqui, nos temos o projeto “Apoio, você não está sozinha!”, que presta esclarecimentos a respeito da lei Maria da Penha e de como ela pode ser acionada, e o “Mulheres da Paz”, voltado à prevenção de futuros casos de violência contra a mulher. A Secretaria está tentando também um programa de Centros da Mulher em grandes loteamentos populares, com lavanderia comunitária, serviços de passar roupas e cozinha industrial, no intuito de aumentar a auto-estima e para que a mulher carente possa ter mais convívio com a família, já que muitas vezes, trabalha fora e faz o trabalho doméstico”.
Regina também destaca que a Secretaria dispõe de oficinas e palestras voltadas ao tema da violência doméstica, que podem ser solicitados por Unidades Básicas de Saúde, escolas e empresas, de maneira gratuita.
“Não adianta só acolher e tratar a vítima. Tem que cuidar e orientar o agressor também” alerta Aristides dos Santos 

“No começo, a aceitação do agressor por seus atos é difícil. Geralmente, a mulher é a culpada por eles estarem aqui”, explica, com semblante e voz calma, o coordenador do Centro de Referência e Assistência à Família (CRAF), Aristides dos Santos, que coordena um dos dois centros existentes no país. O outro CRAF funciona em Fortaleza. O Centro de Referência rio-pretense está em funcionamento desde outubro de 2010, graças a uma parceria com a Secretaria da Mulher, a Caritas e a Paróquia Menino Jesus de Praga, que enfeita uma das paredes da recepção.
Quando o processo por violência doméstica é aberto, o juiz avalia a gravidade de cada caso, e para os mais leves, sugere ao réu a suspensão do processo por 2 anos, para que ele passe por um tratamento. Se aceitar, o agressor, que no CRAF é tratado como “assistido”, inicia um tratamento em grupo, que dura pelo menos 8 meses, em sessões semanais de 2 horas. Atualmente, 69 homens e 1 mulher, que tem tratamento individual, são assistidos no centro. E o acompanhamento tem que ser seguido à risca, como destaca o coordenador. “Se o agressor não comparece à sessão e não justifica a ausência, o juiz pode revogar a suspensão”.
Dentro do CRAF, 2 psicólogos e 2 assistentes sociais prestam assistência aos agressores, que vão desde muito jovens a idosos. Segundo a assistente social Cléa da Cruz, e os psicólogos Anne Cardoso e Weslley Rodrigues, o objetivo do trabalho é o grupo. Durante as 24 sessões do tratamento, temas como o relacionamento e a lei Maria da Penha são abordados. No dia da minha visita ao centro, o tema era “a violência que eu pratico e a violência que praticam contra mim”, na qual os “assistidos” escrevem os diferentes tipos de violência que praticaram e foram praticadas contra eles, e penduram os papéis no “varal da violência”.
Para Cléa, geralmente o 1º mês é o da revolta por estar nesta situação, o 2º é mais tranquilo e, a partir do 3º mês, o “assistido” começa a entender o tratamento e a se apegar aos profissionais. “Muitos não querem mais sair daqui”, garante Cléa, que revela que muitos homens, ao iniciarem o tratamento, acham que vão tomar remédios, assistir uma palestra, pegar um papel, assinar e ir embora.
E Aristides faz um balanço muito positivo do primeiro ano de atividades. “É muito gratificante ver que mudanças estão acontecendo. Muitos “assistidos” que passaram por aqui mantêm contato e se dizem transformados pela situação”. Segundo ele, o centro trabalha os futuros relacionamentos dos que estão em tratamento. “A gente fala sobre família, perdão, preconceito e dos vícios. 80% dos “assistidos” aqui estão separados. A gente os prepara para um novo relacionamento, para que eles se desapeguem do sentimento de posse da mulher, do ciúme de ela ter um novo parceiro. Alguns deles, após o tratamento, acabam se reintegrando às suas famílias”.







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