domingo, 9 de outubro de 2011

O segredo dos seus olhos

     Um dia dentro da vida agitada e cheia de projetos de Alcides da Silva Filho, cego desde 1999


 

“Se eu fosse fazer isso na calçada, não daria, é muito trabalho”, ri Alcides, 44, enquanto caminha, às 5 da manhã, no meio das ruas desertas do bairro Santa Cruz, em Rio Preto. Por ser bastante agitado e gostar de movimento, escolheu a madrugada para suas andanças não só por que gosta de acordar cedo, mas por ser cego, vítima de diabetes, desde 1999. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que existam de 1 a 1,2 milhões de brasileiros cegos e outros 2,5 milhões com perda gradativa da visão. E esse é o único em que Alcides pode se exercitar, junto com sua fiel escudeira, a bengala, sem que precise ficar atento aos montes de carros que passam pela região, todos os dias.
O músico e contabilista conhece muito bem as esquinas, os obstáculos e os lugares do trajeto que seus olhos, antes cor de mel, já não enxergam mais. Porém, seu senso de direção continua intacto, como revela a esposa Alessandra, junto com ele há 19 anos, e mãe de Mateus, 17, Jonas, 14 e Isabela, 4, os três filhos do casal. “Ele é o meu GPS, sabe os nomes de todas as ruas. Antes mesmo de ficar cego, o Alcides já andava de madrugada com o cachorro, sempre foi meio guarda noturno”.
Na quase uma hora de caminhada noturna, ele passa na casa da mãe, Dona Jaci, 82, a duas ruas de sua casa, e pergunta se ela vai querer pão. Depois, a boa e velha padaria da esquina o aguarda, com seis pães para o café da manhã e a encomenda da mãe. Ao longo do trajeto, sempre bem humorado, Alcides conta que muito poucas vezes foi perturbado por quem passava. “Acho que a minha condição dá uma intimidada. Teve uma vez que só que um rapaz me parou e disse: “ei ceguinho, vem aqui, vamos foder!”, e começou a me agarrar. Dei umas bengaladas e tapas nele e ele disse que gostava de violência.  Liguei para a polícia e me perguntaram como era o rapaz. “Eu não sei. Eu sou cego, pô!”.
6 hrs.  A pleno vapor, Alcides acorda os dois filhos para ir à escola. Isabela, que gosta de assistir desenhos animados até tarde, dorme em um colchão na sala. Alessandra também dorme. Na cozinha, o pai coruja prepara vitamina de banana, Toddy e leite. Enquanto os meninos comem, o músico vai para o escritório, equipado com piano e teclado, além de CDS e um computador com sistema DOSVOZ, que ele usa desde 2001. “Até os meninos irem para a escola, eu me exercito tocando e cantando.” A música que resume sua vida é “Tocando em Frente”, de Almir Sater e Renato Teixeira. “Ando devagar, porque já tive pressa, levo esse sorriso, porque já chorei demais”...


“A palavra superação é um símbolo para mim. Eu tenho vivido muito na base dela”


O pior de ser cego, no começo, é admitir que você não enxerga mais. Quando comecei a perder a visão, em 1997, andava com uma bengala comum e se alguém me perguntava se eu tinha algum problema, dizia que estava com dor na perna”. Mas a deficiência visual não trouxe só desencantos a Alcides. “A deficiência me deu a oportunidade de ter mais contato com meus filhos. Como eu parei de trabalhar na firma e a ficar mais em casa, nosso vínculo se tornou muito forte. Sempre fiz questão de acompanhá-los à escola, de mãos dadas. São eles que preparam minha insulina. E essa ligação nós temos até hoje. Nesse mundo agitado, quantos pais podem fazer isso?” questiona, explicando que ele teve que reavaliar seus limites e ampliar seus horizontes.
7 hrs. Mateus e Jonas seguem para a aula e Alcides vai fazer suas atividades. “Geralmente, eu passo a manhã no telefone, fazendo uma politicagem, dando uma palpitada nos assuntos da firma, gerenciada por um amigo e meu irmão, que também esta perdendo a visão, mas não aceita. Depois do café, lá pelas 7hrs30, eu ouço alguns jornais, uso o computador e faço um som. Daí, eu vou tomar banho e me arrumar”. No guarda-roupa dele, geralmente é tudo organizado para que ele saiba onde estão as roupas. Quando se perde ou quer saber a cor de alguma delas, pede ajuda. O banho e a barba ficam por conta própria, já que gosta de se virar sozinho. E Alessandra confirma. “Eu sempre quis fazer a barba do Alcides, mas ele brinca, dizendo que eu posso estar de TPM e cortar a garganta dele”.
8hrs. O compromisso era levar Charlie, um Setter Irlandês, ao veterinário para um banho e para cuidar de um problema em uma das patas dianteiras. Além de Charlie, a família tem dois outros cachorros pequenos, que acompanham Alcides em suas andanças. Segundo ele, não existem cães-guia em Rio Preto.  O preço do adestramento e o tempo, de cerca de 2 anos, são alguns dos fatores que ele aponta para as dificuldades em se ter um cão-guia. No Brasil, existem apenas 3 centros  especializados (São Paulo, Rio e Brasília) e 70 cegos que usufruem do auxílio canino. Há uma fila de espera de cerca de 2.000 deficientes visuais a espera de um.


“É bom que a família não te proteja muito, senão você não cresce”


Mesmo com todas as atividades familiares, Alcides arruma tempo para presidir a Associação dos Deficientes Visuais de Rio Preto (Adevir), desde 2005, e é muito crítico a respeito das políticas de acessibilidade.  Para ele, o benefício do LOAS (R$ 545) concedido aos deficientes, se torna uma faca de gumes, já que o deficiente acaba se acomodando e muitas vezes, a própria família, temerosa de seu contato com o mundo externo, acaba incentivando que ele fique em casa.  “A maioria dos cegos precisa usar o ônibus para se locomover. Muitas vezes, ele prefere ficar em casa e receber o LOAS do que ter que trabalhar o dia inteiro, pegar condução, ouvir piadinhas. E a própria família teme que ele trabalhe, pois assim perderia esse benefício. Mas eu conheço muitos cegos que recebem o LOAS e complementam a renda no mercado informal”.
E na casa de Dona Jaci, às 10 da manhã, ele continua falando de políticas públicas e mercado de trabalho para cegos. Na visão de Alcides, falta interesse das entidades para se inserir o cego no mercado, mesmo havendo campo e gente interessada em empregá-los. “A APAE coloca um monte de gente no mercado de trabalho. Por que não se pode colocar os cegos também?”, explicando que existem instituições na cidade que recebem para manter os deficientes visuais lá dentro e os desencorajam a buscar trabalho.
Para a mãe do Neno, seu apelido de infância, o gênio pró-ativo do filho o ajudou muito a superar e a aceitar a deficiência. “O Neno teve uma aceitação maravilhosa, que eu não tive”, e se emociona, antes de descrever que o filho era um menino muito comunicativo e hiperativo. “De manhã, ele fazia o colegial. À tarde, piano e à noite, o curso de Contabilidade”. E Dona Jaci cita Alcides como um bom exemplo de deficiente. “Eu vejo muita gente que se entrega, se desanima. O Alcides sempre manteve a cabeça erguida, a alegria de viver. Mesmo ele sendo muito independente, eu me preocupo com ele andando sozinho nessas ruas cheias de carros e buracos. Mãe é mãe”.

Do tempo de jovem, Alcides, que enxergou até os 32 anos, se lembra que já teve cabelo comprido, hoje resumido a alguns tufos, rabo de cavalo, uma moto, das viagens pela América do Sul, e de uma de suas bandas, a Sex Shop, famosa na cidade nos anos 1990. Atualmente, ele costuma sair, às vezes, para dançar com a esposa em alguma boate.


“Já viu cego comprando em shopping? Shopping é completamente visual”

12hrs30. Os meninos voltam da escola e a cozinha se agita. Alessandra, chamada de Lê, parou de trabalhar como professora e assumiu os trabalhos de casa e motorista da família. É ela quem pilota o fogão e prepara salada, arroz, feijão e frango. Um dos filhos serve Alcides, que come sozinho e filosofa que a visão, por ser o principal sentido, acaba ofuscando os demais. “Quando se é cego, se perde essa percepção do consumo. Nós vivemos no mundo da imagem. Eu consumo muito sensorialmente, como uma boa comida, uma boa música. Mas quando vou comprar uma roupa ou um sapato, o vendedor, muito por falta de informação, explica o produto, em voz alta, para a minha mulher. Eu só não vejo a imagem, não sou surdo e ainda sei quando um sapato ou uma roupa é confortável”.
A parte da tarde é reservada para um cochilo e depois resolver assuntos de banco, já que ele ainda cuida de suas finanças e da mãe, auxiliado por programas de computador para cegos. Mas na segunda-feira, Alcides está sem saco para ir ao banco, e lembra que algumas vezes, quando para na porta do banco para conversar com alguns amigos, alguém já passou ao seu lado e colocou dinheiro na sua mão, dizendo “Deus te abençoe”. “Ainda existe muita falta de informação quanto ao deficiente. O deficiente se faz muito de vítima e isso me irrita muito”.
E se pergunto se ele, por ter uma vida privilegiada e confortável, pode ter essa consciência e engajamento social, Alcides nem pisca para responder. “Não é a grana o que mais importa, é a atitude. Existe agora a Lei da Acessibilidade do município e nós, os deficientes, temos que lutar para que ela seja cumprida. Mas eu me sinto muito sozinho nessa luta. Existe muita acomodação. Aqui no SENAC, do lado de casa, tem uma sala, toda equipada com computadores adaptados para cegos, livros em Braile, e quase ninguém a usa, se interessa”.

“O orelhão é o inimigo número 1 dos cegos”


“Pior do que cair na rua ou ser travado por uma árvore ou um galho dela, é trombar com um orelhão. É uma dor de lascar”, se diverte Alcides, ao dizer que as calçadas das ruas de Rio Preto são até decentes para um cego, mas o complicado é detectar os orelhões, principalmente a estrutura que cobre o telefone. Para isso, sugere que se coloque um piso emborrachado, o que, segundo ele, não é caro e evitaria muitos acidentes. As segundas e quartas, das 16hrs20 às 17hrs20, Mateus, Jonas e o pai frequentam um curso de inglês no centro da cidade, desde o começo do ano. Apesar de não existirem livros em inglês traduzidos para o Braile, Alcides não perdeu o interesse e, segundo sua professora Juliana, o fato de o aluno já ter enxergado e por o curso se basear muito em conversação, isso facilita na hora de montar imagens e situações com palavras.
Depois da aula, os três voltam a pé para casa e fazem um programa sagrado, de cumplicidade: parar em alguma lanchonete do caminho, tomar um suco e comer um lanche. Alcides, que gosta de falar bastante, explica que não tem hora para dormir, já que ainda não se acostumou com o relógio biológico de um cego, e as horas de sono são bem inconstantes. Às 18hrs, e de volta a casa, ele brinca um pouco com Isabela, que gosta de espalhar os brinquedos na varanda e a transforma num “campo minado” para o pai.
 Naquela noite, Alcides e Alessandra iriam ao shopping pagar umas contas. Geralmente, ele fica em casa, com sua música e sua amada família. Antes de nos despedirmos, às 19hrs, o homem que usa a palavra superação como símbolo, e sempre cheio de histórias, conta que um dia, nesse caminho de volta do inglês, enquanto lanchava com os filhos, uma senhora se aproximou e lhe entregou um bilhete, lido por Mateus: “ainda existem herois nesse mundo”. 

Mãos que leem- Sistemas de leitura para cegos 

Braile: O primeiro sistema de leitura para cegos foi desenvolvido por Louis Braile (1809-1852), cego por um acidente na oficina do pai, aos três anos de idade. Em 1827, Braile lançou o método, que é feito com as pontas dos dedos, com uma ou as duas mãos, da esquerda para a direita. A partir de seis pontos circulares, pode-se formar 63 combinações diferentes de letras, acentos e números. O Brasil foi um dos primeiros países a adotar o sistema, durante o Reinado de Dom Pedro II (1845-1889). Estima-se que 400 mil cegos no Brasil conseguem ler em Braile. Um leitor experiente chega a ler 200 palavras por minuto.
Jaws: Lançado em 1989 por Ted Henter, um ex-corredor de motos que perdeu a visão num acidente de automóvel em 1978, em São Petersburgo, Flórida, EUA. Seu objectivo principal é tornar os computadores pessoais acessíveis com o Microsoft Windows para deficientes visuais. A interface é realizada por meio do fornecimento de informações presentes na tela por meio da conversão de texto para voz ou  Braille e permite uma interacção maior do teclado com o computador.
DOSVOZ: Sistema para microcomputadores da linha PC (Windows 95 ou superior), criado em 1993 por Marcelo Pimentel, um universitário cego, e por professores da UFRJ. O DOSVOX se comunica com o usuário por meio de síntese de voz em Português e outros idiomas. Ao invés de simplesmente ler o que está escrito na tela, o DOSVOX estabelece um diálogo amigável, por meio de programas específicos e interfaces adaptativas. Grande parte das mensagens sonoras emitidas pelo DOSVOX é feita em voz humana gravada. Isso significa que ele é um sistema com baixo índice de estresse para os usuários, estimados em 800 deficientes visuais.



Nenhum comentário:

Postar um comentário