domingo, 13 de março de 2011

A morte séria demais

Na versão brasileira de “A Senhora de Dubuque”, clima pesado e ações muito longas prejudicam a peça
Quando se resolve traduzir uma peça, um livro, uma música ou um filme de uma língua estrangeira, o risco de se dar um tiro no pé é enorme. Em A Senhora de Dubuque, do teatrólogo norte-americano Edward Albee, em cartaz no TUCA desde o dia 12 de março até 10 de abril, a teoria se confirma. Traduzida por Andrés Santos Júnior e José Paulo Ficks, a versão brasileira, com Alessandra Negrini no papel de Georgia, e Karin Rodrigues, no papel de Elisabeth, a senhora de Dubuque, tem dificuldades em empolgar o público, que além de algumas risadas em algumas cenas cômicas, se mantém indiferente e até com ar de cansaço ao longo de quase duas horas de produção, dirigida por Leonardo Medeiros.
Separada em dois atos, o drama de Albee lida com o espinhoso processo da aceitação e da identidade perante a morte. Jo, casada com Samuel (Joaquim Lopes)  está reunida com amigos em sua casa, e até com sarcasmo anuncia sua doença e a morte próxima. Sam, o marido dedicado e inseguro, reluta em aceitar que vá perder a esposa, tratando os casais Carol (Patrícia Pichamone) e Fred (Sérgio Guizé), Edgar (Luciano Gatti) e Lucila (Carolina Manica) com extremo desprezo. Fred, o troglodita alcoólatra, representa o homem amargo até com a futura esposa. Edgar, o amigo fiel de Sam, aceita com passividade os insultos do amigo.
                                                                       Foto: divulgação


O primeiro ato se desenrola na reunião entre casais. Os diálogos, que muitas vezes não funcionam, arrastam o desenrolar da trama, que vai se tornando longa e cansativa. Já no segundo ato, com a entrada da senhora de Dubuque e Oscar, a peça se torna mais psicológica e o texto flui com mais intensidade. Destaque para a atuação muito segura e calma de Karin Rodrigues e ao humor ácido de Edson Montenegro. Alessandra Negrini parece não ter se acertado no papel, que está forçado demais. O ambiente pesado da morte em estilo bretão não se desenrola com naturalidade na primeira montagem brasileira da peça de Edward Albee.
Tanto a iluminação quanto a cenografia se destacam, com a passagem de noite para o dia bem pontuado com um painel luminoso ao fundo que vai trocando de cor ao longo da peça. Já quanto à trama, com um assunto tão desconfortante para muitos que é a morte, aliada ao clima pesado e as atuações amarradas pelo excesso de seriedade fazem com que o público, ao fim do espetáculo, aplauda sem muita empolgação, como se estivesse já quase morto.

A Senhora de Dubuque
Sextas e sábados, às 21h30, e domingos, às 18hrs
Ingressos: R$ 40 (estudantes e maiores de 60 anos e aposentados pagam 50%)

sexta-feira, 4 de março de 2011

No meio das águas de ouro


           Na Guiana Inglesa, enchentes e rios se misturam ao garimpo e aos mais diversos povos




- Eu achei que vocês eram holandêis. Josué, roraimense de Boa Vista, se espanta de ouvir minha mãe e eu falando português.  Para ele, minha pele e olhos claros pareciam europeus demais para um brasileiro. Não se encontra gente assim tão fácil em Roraima. Na Guiana Inglesa, tampouco.
O caminho da fronteira do Suriname para Georgetown, a capital, é feito por vans que esperam na beira do rio que liga os dois países. A viagem, de quase três horas e 200 e tantos quilômetros, revelam um cenário pouco comum para a América do Sul. Comunidades hindus vão brotando na beira da rodovia. Templos indianos. Vacas passeiam pela estrada e descansam aonde lhes convém. Não há regras de trânsito claras. Cada um faz sua velocidade e cuida para não atropelar o animal, sagrado para os indianos. Junto com os templos hindus, surgem mesquitas e descendentes de escravos.
Assim é Georgetown. Um quadro multi-étnico da Guiana, que foi colônia holandesa até 1812 e pertenceu ao império britânico até 1966.  Guiana, terra cheia de águas em idioma indígena. E o nome do país não me decepcionou. Chegando à capital, uma chuva tremenda alagou as principais ruas da cidade. Josué já acha até graça. Isso aqui é comum aqui. A van, que na linguagem dos garimpeiros vira “navete”, atravessa aquele mundo aquático como se fosse um barco. Pessoas andam de galochas e ensopadas até os joelhos.
Josué é mais um brasileiro que se arrisca no garimpo do ouro. Fala meia dúzia de palavras de inglês para se virar. Para indicar aonde vai, solta um you go Hotel Santo Antônio para o motorista. Em uma rua do centro de Georgetown, um pequeno Brasil se formou, com bares tocando Bruno e Marrone, mercados brasileiros e agências de viagens. Dali saem as “navetes” que vão até Lethem, na fronteira com Roraima. Como não arrumamos passagem de avião para o Brasil, resolvemos encarar o trajeto por terra. Terra mesmo, já que a maior rodovia da Guiana é barro puro, aberta no meio da selva amazônica. 

                                            Rua alagada em Georgetown         


Lombar dourada

E lá se vão quase 700 km chacoalhando no caminho, repleto de buracos gigantes cheios de água. O carro vai cheio. 11 passageiros. De última hora, aparece uma moça com seis malas e entope a van de bagagem e gente. Todo mundo espremido, com malas e sacolas nos pés e no colo. Já passam das 19 h quando o motorista, um negro de cabelo rastafári, dá partida e começa a atravessar as ruas muito escuras de Georgetown. Paulo Oliveira, 34 anos, pele escura e surrada, garimpeiro de Boa Vista, viaja do meu lado e começa a explicar o funcionamento do garimpo.
A gente vem até George e procura uma colocação em algum garimpo. Tem lugar que a gente demora quase dois dias pra chegar a partir da rodovia. A gente viaja de navete e de barco. As terras têm dono e ele geralmente é o dono da máquina. Em cada grupo tem de seis a nove pessoas para trabalhar com a máquina e fazer a extração do ouro, que aparece de pedacinhos na terra. Depois essas lascas são fundidas até virar barras e ir mundo afora. A gente recebe pela porcentagem de ouro encontrado. Dentro do garimpo tem televisão, cozinha e uns barracões que o pessoal dorme. Quando tem mulher trabalhando, ela tem um barracão só pra ela, para ficar mais à vontade.
Segundo Paulo, que trabalha há nove anos no garimpo, ele já chegou a fazer R$10 mil por mês. Marli, outra roraimense que busca ouro na Guiana, diz que, apesar de um salário melhor, é uma vida muito sofrida. To indo pra Boa Vista visitar meu marido que ta com hanseníase e vai ficar um ano afastado do garimpo. Eu pego malária com frequencia no mato. Dor de cabeça, febre, mal estar. Mesmo assim, sou uma das que mais trabalham ali. Acordo de madrugada e ando cinco, sete quilômetros atrás de pontos que tem ouro.
Marli, uma morena de olhos verdes, com filha trabalhando de cozinheira no garimpo, diz que os brasileiros respeitam as garimpeiras, apesar de muitos não terem mulher lá e recorrer às prostitutas que trabalham nos bordéis perto dos acampamentos. Os guianeses é que são folgados. Eles gostam mais das branquinhas. Uma vez um deles me agarrou e tentou me estuprar, mas gritei tanto que ele desistiu. Outro ponto que dificulta a vida dos brasileiros do garimpo é a intensa corrupção policial. Quando viaja a Roraima, Marli deixa guardados de dois a três mil dólares guianeses, cerca de 30 reais, para o suborno para passarem com passaporte sem visto de trabalho vencido ou com grandes quantidades de dinheiro ou pepitas de ouro.

                                            Ao estilo inglês, direção invertida em plena Amazônia


Para não dormir, o motorista, que tenta ser gentil com todos, deixa rolar um som bem alto durante o trajeto. Bob Marley, grupos de forró e tecnobrega, Raul Seixas, músicas românticas das antigas. A moça que leva a mudança dentro da van não tem passaporte nem outro documento. A cada parada em um posto da polícia, fica escondida dentro do carro, com malas em cima dela. O caminho ainda é longo e a cada pulo que a van dá para desviar de um buraco é como se uma vértebra fosse embora. Na madrugada, parada para descanso em um sítio de índios, que alugam redes para dormir algumas horas. Estou morto e nem percebo que todo mundo saiu do carro. Quando acordo e vejo uma pessoa olhando o bagageiro com uma lanterna, penso em assalto. Não dessa vez.
Mesmo sendo um país com menos de um milhão de habitantes, a Guiana não é um deserto absoluto em seus interiores. Na beira das rodovias, algumas vilas aparecem, além de alguns postos com barracas de comida e bebida. Postos de gasolina não se encontram. É preciso levar galões com combustível no automóvel. Já passa das onze da manhã quando Lethem surge, com suas ruas de terra batida e atmosfera de cidade de faroeste. Ali é possível comprar todo tipo de quinquilharia made in China, de perfumes e tênis importados a ventiladores. Como em Santa Elena, a fronteira da Venezuela com Roraima, Lethem é o shopping center dos roraimenses.
Depois de 18 horas de viagem sem conforto algum, as costas moídas e o pescoço arrebentado, chegamos a Boa Vista. A moça sem lenço e sem documento desceu em Lethem, antes da imigração, e cruzou de táxi para o Brasil. Paulo resolveu ir até a capital roraimense de ônibus. Dividimos um táxi com Marli e Domingos dos Santos, o Tiririca, comerciante que vai buscar mercadorias na Guiana e na Venezuela para revender no Brasil. Em meio ao ouro do garimpo amazônico, das ruas alagadas, dos templos de muitas religiões e crenças e do calor maldito, a Guiana desaparece na poeira da terra batida.



quinta-feira, 3 de março de 2011

Uma pedra no caminho

http://portalexame.com.br


No Acre faz um calor descomunal. Como diria Nelson Rodrigues, "um calor de derreter catedrais". O ônibus chacoalha por uma estrada regularmente pavimentada. Saio de Xapuri, terra do seringueiro e ambientalista Chico Mendes, com destino à Brasileira, e depois, Assis Brasil. É nesse rincão das Américas que a mirabolante Rodovia Transoceânica começou a ser construída, em 2006. O projeto é uma mescla de interesses: o governo do Acre quer sair do ostracismo de ser um estado com pouca comunicação. A Odebrecht comanda mais uma obra desafiadora. Os governos do Brasil e do Peru vislumbram com a rodovia um aumento nas trocas comerciais entre os países.
O nome Transoceânica é algo que impressiona. Saindo de Santos ou de alguma outra cidade do Atlântico brasileiro, é possível chegar ao Acre, e de lá, alcançar o Pacífico. A conclusão do trecho peruano, o mais trabalhoso, deve levar mais uns três anos.
Mas enquanto isso não se concretiza, é sempre bom relembrar uma história. Em Assis Brasil, me informava de como poderia pegar um ônibus para o lado peruano. Não há ônibus, apenas alguns taxistas peruanos que fazem o caminho. E eis que surge Juan, um homem de traços tipicamente andinos, com seu táxi em péssimo estado, oferecendo o serviço. Eram nove da manhã. Calor. Entrei no carro sentido Puerto Maldonado. O ponto final seria Cusco, a cerca de 700 km de Rio Branco. Dentro do carro, uma Belina branca, sacos de açúcar que Juan leva para revender no Peru a preços inflacionados, dois camponeses cheios de cacarecos e eu, o turista.
Saímos cortando a selva amazônica peruana, em uma estrada ainda de terra. Milhares de homens e mulheres têm trabalhado com as adversidades da floresta para tornar possível a rodovia. Juan fala muito de futebol. E cobre um preço salgado para um turista hermano: de Iñanpari, na fronteira com o Brasil, até P. Maldonado, 150 soles (86 reais). Após quase quatro horas correndo pela selva em um carro pouco confiável, inúmeras buzinadas ( no Perú e na Bolívia, a linguagem da buzina é algo bem recorrente) e uma colisão com um urubu, que se estatelou no vidro, chegamos a Puerto Maldonado, de onde eu pegaria um ônibus para Cusco. 
Passagem até a antiga cidade dos incas = 60 soles (34 reais). A viagem é, digamos, uma odisséia. Saí às 14h30 de P. Maldonado para chegar a Cusco no dia seguinte. A quilometragem, no entanto, é quase ínfima: cerca de 360 km. O ônibus oferece banheiro, uma refeição (arroz com frango) e muita música alta, além de vendedores entrando a cada parada para tentar empurrar algo aos passageiros. Em duas ocasiões, ficamos quase meia hora sem rodar devido ás obras na Transoceânica. Por volta das oito da noite, parada em um vilarejo. Desci, me alonguei um pouco e retornei ao ônibus. Tudo estava muito escuro. A Amazônia, um silêncio sepulcral. Cochilei enquanto exibiam uma película. Foi aí que no meio do caminho tinha uma pedra.
Vários homens armados pararam quatro ônibus de linha. Ouvi alguns estalos, luzes e o cheiro de pólvora. Ainda sonolento, fui descer do veículo. Na porta, um homem encapuzado gritava, com uma escopeta na mão: para baixo e ninguém olha. Na terra fria da floresta, a sensação de impotência. Crianças chorando, agarradas às saias das mães, que tremiam só de pensar que as poucas economias estavam virando pó diante dos olhos. Escuridão. Barulho de tiros. Ao lado de uma mulher gorda, da qual não lembro o nome, tive um momento de auto-defesa e comecei, com a ajuda da mulher, a enterrar minha carteira.
Consegui resgatá-la, após rastejar pelo chão antes de voltar ao ônibus. Tinham me levado uma mochila com a câmera, mp3s, dinheiro e uma jaqueta. Sobrou o cartão de crédito, esperando que ele funcionasse. Chegamos a Cusco na manhã de 16 de janeiro, meu aniversário. Estava sujo, congelando e com a ideia de terminar a viagem por ali. Não terminei.
Passei um dia na polícia, andando de camburão pra lá e pra cá, junto com as duas moças de Rio Branco que estavam no ônibus. Viramos notícia em um jornal de 50 centavos. Tudo é aprendizado. O caminho terrestre para Cusco oferece uma das paisagens mais deslumbrantes do planeta: o encontro da Amazônia, das árvores imensas, com a Cordilheira dos Andes. Parafraseando Fernando Pessoa, “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Mesmo sendo roubado em castelhano.

               








Areias no sapato

       Já passa da uma da manhã.  Enquanto a rodoviária de Bauru parece um faroeste, de tão vazia, um ônibus para. O motorista olha esquisito, mas sorri.  Dentro do veículo está um jovem, vestindo uma túnica branca enorme que esconde até os pés, um turbante e livros na mão. O bigode ainda espesso e o rosto moreno denunciam: só pode ser o cara.
       Khalid Mohamed Al Waheib, 22, estudante de Engenharia Industrial, mulçumano. Nascido em Omã (2,8 milhões de habitantes), país da região do Golfo Pérsico, vizinho dos Emirados Árabes e da Arábia Saudita. Pai: Mohamed, policial. Não sei o nome da mãe.  Apenas que ela tem carro próprio e dirige. Possuem dois camelos. Apesar de viver atualmente na capital omani, Mascate, Khalid é filho do deserto, assim como os nove irmãos. A família vive em uma região desértica ao sul do país.


Khalid e alguns de seus nove irmãos

         Omã é singular, pois seu regime governamental é um sultanato. O sultão do momento, Qaboos bin Said, está prestes a completar 40 anos no poder. A nós, ocidentais, cheira a ditadura. Para eles, o líder deve ser justo com seu povo. Se não eles o derrubam. Nunca ouvi falar sobre revoluções omanis para tirar o sultão do poder. A pouca informação disponível me informa que o país foi parte do império dos Sassânidas e uma ex-colônia britânica
         Era a primeira vez que Khalid saia do mundo árabe, que ainda causa muito fascínio e espanto aos olhos do Ocidente. O choque de culturas era inevitável.  Lá se come com a mão em grandes tigelas e as festas se restringem a eventos familiares. Aqui, o jovem muçulmano, que não come nem presunto e porco, não bebe nem fuma, se viu em uma batalha épica para manusear um garfo e uma faca e experimentou a primeira festa da vida. Khalid preferiu usar uma colher e para certo espanto, até ensaiou umas dança, até com pagode, mesmo que contido, porém alegre.  
         A jornada khalidiana foi muito além de um garfo e uma faca. Já no aeroporto de Mascate, a bagagem se extraviou. Voou de lá até Abu Dhabi, depois Paris, São Paulo. Ônibus até Bauru. Mais ou menos um dia. Ele é o primeiro universitário da única universidade pública de Omã em um programa de intercambio curto (dois meses) da Unesp. De início, faria um projeto no campus de Bauru, mas por falta de um professor que o orientasse, teve que se transferir para Guaratinguetá, onde também oferecem Engenharia de Produção, similar com seu curso.

                                                    Moeda de Omã. Um Rial equivale a R$4,60



           Na semana em que esteve comigo, Khalid, que fala um inglês muito razoável, aprendido na faculdade, se mostrou muito entusiasmado com o Brasil, com a intensa produção canavieira, com as praças centrais, inexistentes nas cidades omanis e da fauna e da flora, que ele pode apenas vivenciar enjauladas em um zoológico. Volto para casa depois de embarcá-lo para São Paulo. Aqui, ficaram o turbante e uma nota de Rial, a moeda do Omã. Bato os pés no tapete antes de entrar. Parece sair areia. Atrás de mim, a rua parece um deserto. Um camelo ainda passa antes da porta se fechar.