domingo, 17 de abril de 2011

Um homem bom




            O Super Santos de Neymar e Ganso teve que enfrentar mais que zagueiros e volantes em 2010. Durante uma visita para entregar ovos de Páscoa em um Lar de Caridade espírita, alguns jogadores se recusaram a descer do ônibus e entregar os presentes.  Parte da delegação santista é evangélica. O Espiritismo, que nem religião é, e sim uma doutrina, é muitas vezes encarado como macumba. E o caminho tortuoso do preconceito e da falta de informação sempre acompanhou a jornada terrestre de Chico Xavier. Mesmo longe da vida terrena, o médium espírita ainda causa muita comoção e polêmica.
 Dois de abril de 2010. Na data em que celebraria 100 anos, Chico foi homenageado pelo diretor Daniel Filho com o longa “Chico Xavier”. O filme, em uma semana de lançamento, se tornou sucesso de público, com quase um milhão de espectadores. Fora o sucesso comercial, a produção se mostra ao mesmo tempo sensível e sóbria ao explorar a conturbada vida do médium e o espiritismo sem cair na apelação. Além da viagem que o espectador é convidado a fazer nas montanhas suaves de Minas Gerais.
Nascido em Pedro Leopoldo, região metropolitana de Belo Horizonte, em 1910, Chico Xavier conviveu desde a meninice com seus “fantasmas”, com as vozes que insistiam em povoar sua cabeça. De família católica, perdeu a mãe muito cedo. Criado pela madrinha,  iniciou com ela um batismo de fogo e provações. Para madrinha Rita, o menino estava de parte com o diabo. Por isso, o obrigava a longas rezas e a lamber as feridas de seus primos como formas de penitência.
O padre da cidade, seu amigo, achava tudo aquilo maluquice de criança. Na escola, era tratado como lunático e criticado pelos outros alunos, pois ganhava os concursos de redação sempre com uma ajuda extra do Além. O pai, compadre João, andava preocupado. Pegou Chico e o levou para se deitar com as mulheres da vida. Ao invés de perder a virgindade, ensinou as moças em descaminho a rezar.
 Pedro Leopoldo ficou em pavorosa. Chico escrevendo cartas de gente que já morreu. Uma multidão se juntando na porta da casa dos Xavier. O novo padre puxando novena atrás de novena para expulsar os “diabos” que haviam tomado conta de lá. A família já não aguentava tamanho assédio. Chico percebeu que novos ares lhe fariam bem.


Sabatina e mudanças


Aos que não acreditavam nos canais entre encarnados e desencarnados, Chico Xavier não passava de um charlatão que enriqueceria à custa de doações. Mas como isso seria possível, se ele, psicografando mais de 400 livros com o auxilio de seus guias espirituais Emmanuel e de André Luis, nunca ganhou um centavo em direitos autorais. Que não cobrava consultas, além de dedicar uma vida inteira à caridade e ao bem ao próximo. Dono de uma vaidade única: usar boina ou peruca para esconder a calvície.
Em 1971, já muito popular, foi convidado para uma sabatina no Pinga Fogo, tradicional programa de entrevistas da TV Tupi. Para os entrevistadores, era a chance de ouro para desmascarar a farsa. O programa durava 60 minutos. Com Chico, durou quase duas horas, sendo uma das maiores audiências do período. Com a voz pausada e bem mineira, Chico Xavier respondeu sereno até as mais ferrenhas das perguntas.
Após o Pinga Fogo, ganhou simpatia em todos os cantos. Mas muita gente continuou torcendo o nariz para tudo aquilo. Residindo em Uberaba desde 1959, coordenava um centro de caridade mantido com a venda dos livros e doações. E não é difícil imaginar como ficavam cada vez mais disputadas as sessões de psicografia. Mães que haviam perdido seus filhos. Todos os tipos de gente procurando um alento, uma mensagem de um ente querido, um consolo.
Uma das cartas psicografadas por Chico protagonizou uma das cenas mais emblemáticas da Justiça brasileira. Um morto absolveu um vivo. Com uma carta, cuja assinatura foi confirmada por peritos como sendo a do morto, o réu foi absolvido, depois de constatado que o assassinato em uma brincadeira com uma arma fora acidental.
E os anos se passaram no plano material. O Brasil se tornou a maior nação espírita do planeta, com mais de três milhões de adeptos. Chico, com aquela placidez, aquela voz calma, foi adoecendo cada vez mais. A catarata, companheira inseparável desde a juventude, tirou-lhe a visão. Mas as mãos, mesmo trêmulas, ainda escreviam pelas janelas da alma. Não querendo incomodar ninguém, desencarnou, aos 92 anos, em 30 de junho de 2002, enquanto a seleção brasileira conquistava o pentacampeonato mundial.
 O Brasil estava feliz. O homem bom podia, finalmente, deixar o mundo terreno, das expiações, da intolerância e da maldade, e adentrar caminhos de luz, de pureza e bondade, de onde ele, mesmo encarnado, nunca saiu.


sábado, 16 de abril de 2011

Melindrou?



Cruzeiro e Vôlei Futuro travaram mais do que uma batalha por um lugar na final da Superliga Masculina de Vôlei. Fora das linhas, da rede e dos bloqueios, o que virou notícia foi a recepção pra lá de calorosa que o jogador Michael, do Vôlei Futuro, teve no primeiro jogo, sendo aclamado de “bicha, bicha”, por quase a torcida inteira, incluindo mulheres, idosos e crianças.
Vivemos a sociedade que discute a intolerância, o preconceito e que está mais à vontade para aceitar a diversidade. O ato homofóbico contra Michael ganhou destaque Brasil afora, o Cruzeiro se viu obrigado a se retratar e a pagar uma multa de R$ 50 mil por conta das ofensas. O time de Araçatuba levantou bandeiras do arco-íris, fez uma linda festa contra a intolerância e parece que a justiça foi feita. Mas os nossos amigos Bolsonaros andam por aí, saudosos da ditadura.
De um lado, o jogador homossexual. De outro, o deputado que dispara feito metralhadora ofensas contra negros, cotistas, gays e maconheiros. E nenhum deles está errado. Cada um defende um grupo social. Ou você acha que só existe um Jair Bolsonaro? Mas um ponto une a trajetória desses dois cidadãos: o politicamente correto, a maior praga educativa dos últimos tempos.
Negão virou afro-descendente. Anão virou pessoa de baixa estatura. Sapatão virou mulher com atração pelo mesmo sexo e time pequeno, clube de baixo investimento. E com essa cortina de ferro da moralidade, estamos traçando um caminho muito mais perverso do que o preconceito. Estamos aprendendo a velar nossa intolerância achando que assim nos tornamos pessoas mais compreensivas com a diferença. Mas os Skinheads, Carecas do ABC, grupos neonazistas e matadores de índios e moradores de rua dão o alerta de que o copo do ódio racial, sexual e étnico está transbordando.
O excesso do politicamente correto está nos deixando sem graça, com receio até de piada de português para não ser processado pela comunidade lusa. No futebol, acabou a farra moleca de Paulo Nunes e suas máscaras da Tiazinha e da Feiticeira, de Viola imitando um porco, da descontração na hora do gol. Se um jogador joga contra o ex-clube e faz gol, não comemora por respeito. Palmeirense não pode mais ser chamado de porco. Nem corintiano de gambá. Muito menos são paulino de bambi e santista de sardinha.
Nas escolas, toda a gama de apelidos trocados entre os alunos tem sido repreendido em nome da moral e dos bons costumes. Rolha de poço, quatro olhos, leite azedo, viadinho, Olivia Palito. Tudo proibido. O bullyng se tornou o responsável por todas as frustrações escolares, pelo ex-aluno desequilibrado que abriu fogo contra a escola em Realengo. Os apelidos, coisa saudável, têm se transformado em bazucas do desrespeito.
Estaríamos perdendo a linha entre a brincadeira saudável, o bom humor e a intolerância. Para os profetas do politicamente correto, é tudo farinha do mesmo saco. A polícia do pensamento continua fazendo ronda para que as ditas minorias sejam respeitadas, nem que seja à força e goela abaixo. Mas respeito e tolerância não se conquistam com a supressão das ofensas, com o eufemismo das palavras e com as mordaças nos xingamentos. O diálogo e o bom senso ainda são os melhores remédios.
                                                 



quinta-feira, 14 de abril de 2011

Um carnaval dos diabos



                     Fuego! Fuego! A festa vai começar!


Para quem está habituado ao carnaval brasileiro, regado a mulheres nuas, com muito Axé, Funk e Pagode, vai se sentir um E.T no carnaval boliviano! Lá pelas terras de Evo Morales e Cia, a festa carnavalesca é pautada pela alegria também, mas em seu carnaval mais famoso, em Oruro, a fé católica caminha de mãos dadas com as forças do diabo.
Uma quinta-feira pré-carnaval. Álvaro (um amigo do Chile) e eu buscávamos hospedagem em Oruro, uma cidade de cerca de 400 mil habitantes, distante 300 km de La Paz. O departamento de Oruro abriga atrações, como a cidade de Orinoca, terra natal do presidente Morales, o vulcão e o parque nacional Sajama, além do carnaval orureño, reconhecido pela UNESCO desde 2001 como patrimônio oral e intocável da humanidade. Oruro (a cidade) já foi um importante centro minerador e entroncamento ferroviário.
Atualmente, as maiores fontes de renda se concentram no turismo e na força do período carnavalesco que atraem milhares de pessoas. Ao telefone, falo com Dom Fernando, que nos oferece quatro noites de hospedagem em sua casa por 50 dólares (83 reais). A rede hoteleira na cidade ainda é escassa. Assim, na falta de quartos, os próprios moradores aproveitam a data e alugam quartos de suas residências para bolivianos de outras partes ou estrangeiros. Mas e a diabada toda, de onde surgiu?


A origem


Há várias lendas e teorias que buscam explicar a devoção dos orureños pela Virgen del Socavón (a virgem dos mineiros, das minas), motivo central das festas carnavalescas. Reza a lenda que no final do século XVIII (idos de 1789) um “Robin Wood latino” denominado Nina Nina(em aymara significa fogo), se apaixonou pela filha de um rico comerciante. Como a maioria de tragédias de amor, no dia da fuga do casal, o pai da moça os surpreendeu e esfaqueou Nina Nina, que antes de morrer, declarou sua devoção à Virgem.
 Outra história semelhante é a do bandido Chiru Chiru, que ao tentar roubar um peão nas cercanias do morro Pé de Galo, foi ferido, indo agonizar dentro de uma mina. Algumas pessoas deram por sua falta, e dias depois, encontraram o cadáver com uma surpreendente imagem da Virgem da Candelária. Na época, acreditou-se que ele só chegou àquele local guiado pela Virgem de Socavón. Coincidentemente era sábado de carnaval, e os mineiros gozavam de três dias livres para celebrar o carnaval.
 Homens do subsolo, os mineiros bolivianos misturam diversos tipos de crenças. Além de preceitos incas, como a valorização da natureza, os mineiros tem uma arraigada fé católica, mas ela só é manifestada fora das minas. Dentro delas, onde a escuridão e o silêncio imperam, só há lugar para uma divindade: o Tio. O Tio é uma espécie de diabo a quem os mineiros oferecem folhas de coca, cigarros, pinga e outras oferendas pedindo proteção para o dia árduo e perigoso dia de trabalho, e também que possam encontrar um metal precioso para assim saírem da vida insalubre e tóxica das minas.
Em 1900, quando chegava o carnaval, alguns mineiros decidiram se disfarçarem de diabo para adorar a virgem e brincar os festejos. Carlos Condarco Santillán, estudioso em folclore boliviano relata que essa é a hipótese mais aceita para o início da Diablada. A partir desse momento, Oruro passou a ser invadida todos os anos por uma “legião de diabos” cantantes, que por meio da dança, rendem homenagem à Virgem das minas e simbolizam o embate entre o bem e o mal.
A cada ano, o carnaval de lá foi se aprimorando, e como um Rio de Janeiro, montou uma festa que atrai os olhares ao redor do mundo. Os diabos começam a por suas máscaras coloridas e roupas berrantes. As Morenadas também. Bailarinos e músicos afinam instrumentos e corpos para o desfile. O porquê da importância e da originalidade do carnaval de Oruro é tema da coluna da semana que vem. A festa está só começando.


Deuses e Demônios


Quinta à noite. Um grande número de carros, todos adornados com metais (talheres, pratarias), flores e tecidos irrompem a avenida do carnaval junto a fiéis, bandeiras e transeuntes. E nesse instante estão abertas os festejos de mais um carnaval na cidade de Oruro, Bolívia. A devoção pela Virgem de Socavón é exaltada em diversas ocasiões. A procissão é a primeira delas. Como o carnaval mais célebre dos bolivianos é uma manifestação da fé católica, agregado agora com marketing e glamorização, é o padre da cidade quem inicia a festa com uma caminhada santa pelo trajeto, que nos próximos dias, receberá além dos diabos orureños, dançarinos, músicos, jornalistas e os visitantes de outras Bolívias e do mundo.
Ao contrário da Sapucaí carioca, Oruro não tem nenhuma passarela do samba. O trajeto de três quilômetros é feito entre avenidas, ruas estreitas e praças. O mais importante é chegar à igreja construída em devoção à Virgem. Essa é a recompensa dos dançantes: render homenagens à Santa após a árdua caminhada, dançando e cantando. Esse é um dos motivos pelas quais a cidade não investe em infra-estrutura, que se nota em todos os níveis. Junto ao desfile, arquibancadas toscas de madeira com lonas são montadas. Os preços variam e são, digamos, bastante negociáveis. Fiquei junto com Álvaro, o amigo do Chile, em um setor bom, a 130 bolivianos por dois dias (aprox. 31 reais).
Os desfiles acontecem no sábado e no domingo. Atualmente, participam da festa 48 agremiações. As exibições começam por volta das sete da manhã e só terminam no anúncio da madrugada, quando os jovens vão para as boates ou ficam vagando pelas ruas, bebendo cerveza, chacumbê (espécie de quentão) e comendo papas fritas com salsicha. Outras coisas curiosas desse carnaval são o Charkekan, um prato típico, misto de carne de lhama, batatas e ovos cozidos, milho e uma fatia de queijo branco, além das batalhas de balões de água e espuminha. Não há confetes, tanpoco serpentinas. Uma multidão de crianças e adultos “brinca” de se espirar espuma na cara e se encharcarem de água. Capas de chuva são recomendadas e vendem tanto quanto os balões.





Apesar de cansativo, e de algumas vezes, entediante, o carnaval de Oruro mantém uma magia difícil de encontrar. O sistema de segurança é precário, o que possibilita que os visitantes, por alguns momentos, interajam com os “artistas”. Desfilam as Morenadas, que representam os escravos vindos do continente africano. Em Oruro, eles se vestem de maneira luxuosa, quase real, para homenagear aos que sofreram nos tempos da colônia. Há o bloco com temáticas Incas, das touradas e da galhofa, como os Doctorzitos, uma série de homens de meia idade que trajam fraques e se exibem de modo pomposo para debochar dos advogados e alguns burocratas da coroa espanhola. Um ponto alto do desfile são os Caporales, companhias de danças que fazem a platéia vibrar com as coreografias e o sincronismo impecável. Mas a estrela da companhia continuam sendo as Diabladas. Há seis fraternidades “diabólicas” na cidade, sendo a Autentica e a Urus as que mais causam frisson durante as apresentações.




     Momento de devoção à Virgem padroeira da festa


O nível do carnaval aumentou de maneira impressionante. De meia dúzia de mineiros que se disfarçaram de diabo para louvar à Virgem de Socavón, no inicio do século XIX hoje as mascaras e os adereços de diabos são atrações à parte. A fraternidade Urus, por exemplo, faz a platéia ir ao delírio quando alguns mascarados soltam fogo dos chifres. O que não mudou por lá é o final da caminhada. Os artistas, com roupas muito pesadas, a penitência para alguns deles, chegam aos pés da mina Pé de Galo, onde se encontra a igreja da Virgem. De joelhos, eles caminham em direção ao altar, para renderem homenagens e orarem para a mamita. È uma cena espetacular. Até os homens das trevas se curvam diante dela. Os deuses e demônios se encontram. Mais do que a luta do que o bem contra o mal, essas duas forças trazem ao homem, mesmo em uma festa pagã, o encontro do corpo e da alma, numa conexão arrepiante.




terça-feira, 5 de abril de 2011

Os mil olhos do cabra


Uma infinidade de olhos azuis atentos se espalha pela cidade. Na farmácia, na churrascaria, na praça central e até mesmo dentro da bilheteria do cinema, eles estarão lá, impassíveis, feitos de gesso e pertencentes a um dos personagens mais barulhentos da recente história brasileira: o padre Cícero Romão Batista, ou para os íntimos, Padim Ciço.
Lá em Juazeiro do Norte, no sul do Ceará, a figura do padre é mais do que sagrada. Cícero, que nasceu no Crato, cidade vizinha, foi um dos primeiros a chegar à vila de Tabuleiro Grande, e peça chave na criação da cidade e sua conversão em Meca nordestina. Na cidade, a segunda maior do estado, só perdendo para a capital Fortaleza, tudo órbita em volta do padre.
Após chegar de uma viagem longa pelos interiores do Piauí até o Ceará, me hospedei no hotel Cicerópolis (cidade do Cícero), mais uma das inúmeras homenagens a ele. Na praça Pd. Cícero, uma estatua do cabra faz às vezes de fonte, orelhões e postos policiais com formato de chapéu preto circular e bengala, dois acessórios indispensáveis ao padre, que vivia sempre de batina preta.
E a idolatria segue Juazeiro adentro, que guarda as duas últimas casas em que ele viveu, a igreja do Perpétuo Socorro, com seu túmulo, e a Serra do Horto, local onde está o maior Cícero de todos, uma estátua de 27 metros de altura, guardiã mor da cidade.
Caminhar por ali traz uma sensação de claustrofobia e de vigilância intensa. O padre Cícero está onipresente a cada esquina e nas inúmeras barraquinhas que vendem padinhos de gesso, de borracha, que cantam e brilham no escuro. Só falta soltarem piruetas. Imagine então passar o carnaval, a festa mais popular e profana do Brasil em um lugar que junta mais de dois milhões de romeiros a cada evento especial relacionado ao Padre Cícero, no ano, como no dia de sua morte, em 20 de julho.

Sala de promessas no Memorial Padre Cícero


                                                                                         A invenção do Juazeiro


Cícero Romão Batista (1844-1934), antes de se tornar um “santo” pela maioria dos juazeirenses e milhares de fiéis, além do título de cearense do século, levou um bom tempo para se tornar padre. Como seminarista, era considerado pouco aplicado por seus professores, apesar da inteligência e da devoção. Só aos 26 anos recebeu o sacerdócio e pode se tornar padre. Saindo de Fortaleza, retornou ao Crato, onde ministrou aulas de latim.
O primeiro contato com o Juazeiro ocorreu na época do Natal. Convidado a rezar a missa do galo, o homem dos olhos azuis e cabelos loiros (mais conhecidos no Nordeste como galegos), se impressionou com a aridez do vilarejo e da falta de um pastor para o rebanho de ovelhas desgarradas. E, após uma visão mística da santa ceia, onde o próprio Jesus conclamava o sacerdote a cuidar daqueles sertanejos sem alguém que os conduzisse aos ensinamentos cristãos. Assim, em 1872, se mudou de mala e cuia para a vila, distrito do Crato.
Juazeiro, que só é do Norte para se diferenciar de Juazeiro-BA, é hoje uma das nove cidades que compõem o vale do Cariri cearense, junto com Barbalha, Nova Olinda e o próprio Crato, todos lugares da intensa vida do padre Cícero, que se tornou maldito para a igreja, por seus supostos milagres e alinhamento político. Mas hoje, o Vaticano começa a ver com olhos bem mais amistosos o cearense.



                            Estátuas de Padre Cícero e da beata Maria de Araújo




A Cruz

           
Não é exagero afirmar que o Juazeiro do Norte seja uma invenção genuína do Padre Cícero. É impossível imaginar a cidade sem a presença dele. Até 1889, a pacata vila mal figurava no cenário nacional. Mas após o famoso e controverso episódio da hóstia convertida em sangue, a vida do sacristão nunca mais foi a mesma. Era primeiro de março. A beata Maria de Araújo recebia a comunhão de Cícero, quando, espantado, viu jorrar sangue da boca da mulher. Um milagre, o sangre de Cristo. Ou apenas uma fraude. A polêmica estava acessa.
De Fortaleza, sede do bispado cearense, o bispo Dom Joaquim passou a olhar com muita atenção os acontecimentos ditos sobrenaturais do Juazeiro. E os olhos do bispo se arregalaram ainda mais quando a notícia se espalhou Brasil afora, atraindo uma leva de romeiros à vila. E o sangue continuou jorrando da boca de Maria de Araújo. Outras beatas diziam ter reuniões espirituais com anjos e com o próprio Cristo. Histeria geral. Dom Joaquim resolveu agir. Mandou dois padres de alta confiança dele para averiguar tais estórias.
E foram precisas duas averiguações para se constatar que os milagres juazeirenses e da região não passavam de fanatismo religioso e de algumas artimanhas químicas que faziam com que o líquido vermelho se assemelhasse ao sangue humano. Padre Cícero sofreu sua primeira suspensão das ordens religiosas. Por decreto do Vaticano e do bispado de Fortaleza, estava proibido de celebrar missas, fazer batizados e extrema unções. Só que duas das maiores características do padim eram a teimosia e a convicção em suas ideias.
Mesmo oficialmente suspenso, um mar de fiéis continuou se consultando espiritualmente com Cícero e a encher o Juazeiro, que não parava de crescer. A queda de braço do Padre Cícero com a cúpula da igreja católica para o reconhecimento do milagre do Juazeiro e da restituição de suas ordens religiosas continuaria. Se fosse preciso, iria até Roma, ter audiências com o Santo Ofício, e até mesmo com o papa Leão XVIII. E ele foi.
           

 A Espada

Cícero retornou da Itália triunfante. Atestado pelo Santo Ofício, “Padre Cícero não participou de nenhuma fraude”, sendo inclusive elogiado, pois mantivera sua obediência em manter silêncio sobre os fatos polêmicos. Como as informações demoravam muito a chegar no começo do século XX, Dom Joaquim se aproveitou da falta de documentos oficiais, e alegou que nada havia se modificado na suspensão. Entre reviravoltas, Cícero, um teimoso obediente à sua igreja, amargou mais de 50 anos suspenso das ordens.
Sem exercer a função do sacerdócio, Cícero Romão passou a se enveredar pelos caminhos da política. Há algum tempo, passara a ser amigo do médico baiano Floro Bartolomeu, que se instalara no Juazeiro disposto a explorar uma mina de um sítio pertencente ao padre. Só que, no meio do caminho, ou da história, o governo estadual, encabeçado por Franco Rabelo, declarou guerra ao fanatismo religioso do Juazeiro, que resolveu proclamar sua independência do Crato.
Com as tropas do governo instaladas na cidade vizinha, restou ao padre orar pela paz. Só que com rifles apontados para o inimigo. O Dr. Floro se encarregou de armar uma esquadra para os combates. Nos planos do governo cearense e de alguns entusiastas na capital, o Juazeiro, terra dos romeiros cegos de fé, deveria ser destruído, assim como Canudos, do beato Antônio Conselheiro.
De um lado, as tropas estaduais e federais, sedentas da cabeça do padre. Do outro, um esquadrão de romeiros, devotos e cangaceiros, com rifles à mostra e terço junto ao peito, dispostos a dar a vida pelas terras sagradas do padim Ciço.
             

O lado escuro do terço

O governador Franco Rabelo dava como certa a vitória de suas tropas contra os fanáticos ignorantes do Juazeiro. Após a longa viagem de Fortaleza até o Crato, os soldados mal tiveram tempo para descansar ou se armarem de acordo. A pressa em liquidar o vizinho rebelde era urgente. E assim foram, a pé, até o Juazeiro. Ao chegarem, a surpresa: ao redor da cidade, uma imensa trincheira havia sido construída.
Enquanto os homens se preparavam para a guerra, o Padre Cícero havia recrutado crianças, mulheres e velhos para cavarem o fosso. Até colheres foram utilizadas na obra. Resultado: o exército, por conhecer pouco a região e sem conseguir adentrar o território inimigo, perdeu a primeira batalha. E, na segunda investida, os homens do governador saíram humilhados. Floro Bartolomeu e seus “cabras” foram se assanhando e invadiram o Crato.
Apesar de Cícero pregar que a guerra só servia para defender o Juazeiro de sua destruição, a cruz e a espada já tinham se cruzado. Pelo envolvimento político, foi excomungado pelo Santo Ofício, mas morreu sem saber do fato, pois Dom Quintino, bispo da recente diocese do Crato e responsável pelo anúncio, acreditava que o padre aliviasse a sua teimosia, e que talvez não agüentasse o baque da notícia.
Então, as tropas sertanejas de Floro passaram a invadir e a saquear cidades próximas, e, nos trilhos do trem, cortaram Ceará adentro até os arredores de Fortaleza. Lá do Rio de Janeiro, o poderoso senador Pinheiro Machado, que, na surdina, apoiava o movimento, contribui para a queda de Franco Rabelo e a volta de Nogueira Accioly ao governo do Ceará. Todo esse confronto ficou conhecido como a Sedição do Juazeiro, que a partir de 1914, foi elevado à condição de cidade. O primeiro prefeito: Padre Cícero.
Além de exercer por vários mandatos o cargo de prefeito, Cícero ainda foi sub-governador do Ceará e Senador, após a morte de Floro Bartolomeu. Nunca assumiu o cargo. Continuou afastado da igreja e cada vez mais recluso em si mesmo. A vista já não era de águia. O corpo precisava de longos repousos. E, como se não bastassem às doenças, ele ainda convivia com um problema que deixara seu pescoço torto.
Nesse longo caminho, até Lampião chegou a fazer parte da história do Juazeiro, que evoluía a todo vapor. Na década de 20, com a Coluna Prestes serpenteando Brasil adentro e próxima das terras sagradas, o padre mandou chamar o rei do Cangaço para ajudar. Lampião se bandeou para o Juazeiro, mas a Coluna havia tomado outro rumo. Daí nasce o mito errado de que Cícero teria ligações profundas com o cangaço.


Sertão de  Nuvens 




A década de 30 chegou. Cícero Romão Batista agoniza em uma cama muito simples. Dores. E, nos versos de Luiz Gonzaga, “Meu padim fez uma viagem, pois deixou o Juazeiro sozinho”, abençoa os que estão próximos de seu leito e prega: “No céu, pedirei por vocês todos”.
A cidade do Crato, que por muito tempo foi referência no Cariri cearense, ficou em segundo plano frente ao Juazeiro. Apesar de Cícero ser cratense de nascença, é juazeirense de coração e hoje, sua fascinante história está concentrada nas ruas de Juazeiro do Norte. A igreja católica, sob o papado de Bento XVI, começa a acenar com mais simpatia para a reabilitação do padre brasileiro das ordens religiosas. Até uma possível canonização é comentada.
Perdendo cada vez mais espaço e fiéis para as correntes evangélicas, a igreja católica viu em Pd. Cícero um filão imperdível. E os juazeirenses, muito religiosos em geral, aguardam o dia em que poderão exibir com orgulho imagens de seu padim dentro das igrejas da cidade. Só há duas referências sobre Cícero dentro de um templo: uma foto e um vitral, virado para fora, na igreja do Perpétuo Socorro, onde está enterrado.
Mesmo envolto em tantas polêmicas e escândalos, a figura simples do Padre Cícero, batina preta, chapelão e cajado, ainda causa extrema comoção nos que nele acreditam e crêem em sua grandeza e bondade. Para uma multidão, um santo. Para outros, um farsante e amigo dos cangaceiros, que fez fortunas com as doações de seus romeiros, e que continuam até hoje. Existe Padre Cícero para todos os gostos.