quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Intestinos verdes




Na beira da estrada, um labirinto de verde é observado por toda extensão possível que os olhos alcançam. Especialmente na região de Ribeirão Preto, onde a cultura da cana de açúcar vive uma nova febre. Na história do Brasil, a cana data dos primórdios da colonização européia. Nas antigas capitanias de Pernambuco e São Vicente, o ouro era o açúcar e a cachaça. Do Brasil, a água-ardente seguia em direção à Europa e à África, de onde eram trazidos os escravos, principalmente da região do Congo e Angola. Desse comércio triangular, mais de quatro milhões de africanos desembarcaram no país. O início da nossa pele preta.
Séculos depois, imensas plantações de cana têm se alastrado por inúmeras regiões brasileiras. No estado de São Paulo, algumas estradas se converteram em majestosos intestinos verdes. Dirijo por um deles em direção ao distrito de Cândia, mais um Brasil que quase ninguém conhece. Quanto maior o país, maior a probabilidade de ele esconder nas entranhas mitologias de vilas pitorescas, cidades cravadas no meio do nada. No continente Brasil, o misticismo acontece nas cinco regiões. Cândia não tem mais que quatro mil viventes. Uma estrada única segue para lá. Vê-se cana por todos os lados. Em uma curva mais brusca, algumas casas persistem no horizonte esverdeado. Lá é Cândia, distrito de Pontal, encoberta pela cultura da cana.
Fala-se muito em etanol, no álcool mais barato do que a gasolina, em carros flex mais econômicos. Na economia da cana, porém, o gatilho está engatilhado para os migrantes que vem trabalhar em terras paulistas cortando as veias, as tripas e as gorduras do intestino poderoso. Não é difícil observar na entrada de várias cidades chaminés expelindo a fumaça sucro-álcooleira. Só em Monte Aprazível são duas. Em ônibus, os errantes quase ciganos chegam. São maranhenses, baianos, paraibanos, cearenses. Durante o dia, a sinfonia dos facões impera sob o sol abrasador. Deve ser terrível trabalhar debaixo dessa caldeira
Lá em Cândia, há muitos migrantes também. Muitos sonham em voltar para a terra natal. Alguns já se habituaram a vida Severina da cultura da cana. O açúcar sai doce. A vida permanece amarga para eles.  A igrejinha na praça. Bares. Um a cada esquina. O dinheiro pujante do setor sucro-álcooleiro ali quase não chega. Permanece retido na mão de meia dúzia na cidade grande. Um amigo que mora comigo em Bauru é de Cândia. Para ele, Cândia é o mundo. Faz sentido. Cada um tem o seu. O planeta terra como mundo único é ordinário demais.
A cana traz riqueza, mas empobrece ao mesmo tempo. O Brasil está acostumado a monoculturas. Antigamente, cana. Depois café. Agora soja, cana e outros. O solo tão vigoroso vai definhando. Os homens que cultivam a terra morrem cada vez mais cedo, vivem em péssimas condições. Nos ônibus rurais pela madrugada, botas de plásticos, marmitas e algumas esperanças. Protegem-se do frio com o que podem. Ao entrar mais uma vez nos intestinos verdes, a sensação pesada de mais um dia árduo de labuta. A rapadura é doce. Mole não.
Nos postos de gasolina e escritórios das usinas, o sorriso atraente do lucro. Ando mais um pouco pela Cândia encantada, que resiste em existir em meio às plantações, aos caminhões ensurdecedores que cortam a rodovia. Umas vacas ao por do sol chamam a minha atenção. Ali tudo parece estar tranqüilo, repleto de natureza. O corpo canavieiro continua firme. Os intestinos continuam a digestão, na calmaria costumeira do interior.

 

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